Desconfiança que Ernesto Araújo tem do ex-chefe leva país a ignorar missão em Nova York e enviado cala sobre ataque de Bolsonaro a Bachelet
(O Globo, 06/09/2019 – acesse no site de origem)
O governo brasileiro ignorou a sua missão nas Nações Unidas, em Nova York e enviou um funcionário do segundo escalão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos crítico à Lei Maria da Penha de Brasília para uma sabatina sobre direitos humanos na sede das Nações Unidas, em Nova York, ontem. A viagem de Alexandre Magno Fernandes Moreira, que responde ao número dois de Damares Alves, Sérgio Augusto Queiroz, para uma sabatina com a sociedade civil sobre a reeleição do Brasil para o Conselho de Direitos Humanos da ONU sinaliza a importância que o país conferiu à reeleição no órgão em Genebra. Na prática diplomática, o envio de alguém da capital significa que o assunto é prioritário para o país.
Por outro lado, a atitude brasileira evidencia a desconfiança do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em relação a seu ex-chefe, Mauro Vieira, ex-chanceler (2015-2016) e ex-embaixador em Washington, que hoje comanda a missão brasileira na ONU.
Antes de trabalhar como secretário-adjunto de Políticas Globais do ministério de Damares Alves, Moreira era procurador do Banco Central em Brasília. Em diversos artigos, defende posições como o direito legal à homofobia e o ensino domiciliar. No artigo “Lei Maria da Penha e a criminalização do masculino”, publicado no site Direitonet em 2007, ele critica a lei para coibir a violência contra a mulher aprovada no ano anterior.
“Ser punido por atos que inevitavelmente ocorrem no cotidiano de um casal significa penalizar o homem como tal e não os fatos em si. Nos dias de hoje, ser homem pode ser um crime, exceto se pertencer a alguma minoria legalmente protegida, como negros, índios, idosos, crianças, adolescentes e, em um futuro próximo, homossexuais”, escreveu.
Desconfiança com ex-chefe
Já o embaixador Mauro Vieira foi chefe de Araújo em Washington, onde ambos serviram entre 2010 e 2015. Cinco fontes consultadas no Itamaraty confirmaram que Araújo não confia na missão brasileira na ONU, está brigado com seu ex-chefe e procura substituí-lo. O embaixador contaria com o apoio do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, afirmaram. Em viagem em maio, Alcolumbre teria prometido que Vieira permaneceria como chefe da missão brasileira até a aposentadoria, em 2021, o que Araújo tentaria reverter .
Pessoas que trabalham próximas à missão em Nova York disseram que os diplomatas lá têm atenuado diversas posições de Araújo, com um comportamento mais parecido com as posições clássicas da diplomacia brasileira. Este comportamento seria diferente do da chefe da missão brasileira em Genebra, Maria Nazareth Farani Azevedo, muito alinhada a Araújo. Procurado, o Itamaraty não respondeu sobre os motivos de ter sido Moreira o representante do país.
Na leitura de seu voto, ele apresentou uma versão resumida da candidatura formalizada em junho, que excluiu menções a gênero e à tortura e incluiu “o fortalecimento das estruturas familiares” entre seus pontos mais importantes. Moreira enfatizou o “direito à vida” como prioridade, em uma crítica implícita a países onde o aborto é permitido.
O momento mais polêmico do Brasil foi uma pergunta sobre os ataques do presidente Jair Bolsonaro à alta comissária para os Direitos Humanos da ONU , Michelle Bachelet, nesta semana. A pergunta foi feita em nome da organização Conectas Direitos Humanos e reforçada pelo secretário-geral adjunto para os Direitos Humanos da ONU, Andrew Gilmour, que mediava a sessão e, em sua única intervenção destinada a um só país, disse que considerava o assunto“muito importante”.
Moreira ignorou completamente a pergunta e não citou o nome de Bachelet. Apesar de silenciar sobre o assunto, seu comportamento foi mais moderado do que o apresentado pelo Brasil nas últimas sessões do Conselho de Direitos Humanos, quando o país votou alinhado com países islâmicos em questões de gênero. O comportamento gerou críticas e levou Araújo a ser convocado para uma audiência pública em 7 de agosto.
Moreira afirmou que o país considera que direitos de pessoas LGBT são parte integral dos “direitos humanos e que o Brasil está comprometido a combater toda forma de discriminação”. O representante de Damares também disse que o governo está comprometido a trabalhar com ONGs, alvo críticas de Bolsonaro.
—Consideramos o papel da sociedade civil na arena internacional e na formulação de políticas públicas no Brasil extremamente importante. Estamos totalmente devotados a trabalhar com a sociedade civil no mundo todo, não só em palavras, mas efetivamente.
Perguntado sobre incêndios na Amazônia, o secretário leu uma longa resposta defendendo que o Brasil “harmonizou agricultura com preservação”. Sobre populações indígenas, disse que “há no país o reconhecimento de que a prosperidade do país está atrelada a respeito aos povos indígenas”.
Acenos de moderação
A moderação brasileira aponta para uma tentativa de atrair votos. As eleições acontecem em outubro, durante a Assembleia Geral da ONU, e há duas vagas para países sul-americanos e do Caribe. Brasil e Venezuela são os únicos candidatos, o que torna uma derrota improvável. Apesar disso, terão de somar 97 votos, e circulam cada vez mais rumores de países indispostos a votar em apoio a Bolsonaro. Segundo Camila Asano, coordenadora da Conectas Direitos Humanos, a ida de um representante de Brasília adiciona peso ao pleito brasileiro, mas este é comprometido por atitudes do próprio presidente.
— O governo Bolsonaro enviou um representante de Brasília a Nova Iorque para defender a candidatura mostrando que o pleito é prioritário para nossa diplomacia. Lamentavelmente, os ataques do presidente à principal representante da ONU para direitos humanos caminham em direção contrária — afirmou, acrescentando que a fuga da pergunta sobre Bachelet “comprometeu ainda mais a credibilidade do Brasil como candidato ao Conselho”.
Eleanor Openshaw, diretora em Nova York do Serviço Internacional para os Direitos Humanos (ISHR), que participou da sabatina, criticou a falta de concorrência aos assentos na América Latina, com Brasil e Venezuela sendo os únicos candidatos. Tradicionalmente, países violadores buscam se candidatar para atrapalhar as votações.
— É muito decepcionante que os Estados da região tenham permitido que seus dois candidatos tenham sido Brasil e Venezuela, dois Estados que sofreram severas críticas recentemente por seus históricos de direitos humanos — afirmou.
Por André Duchiade