Parece uma epidemia que acontece em todas as classes sociais mundo afora
(Folha de S.Paulo, 15/09/2019 – acesse no site de origem)
Vinte de outubro de 2018: depois de seis anos de separação, homem volta e mata a ex-namorada. Quinze de agosto de 2019: homem invade shopping e mata ex-namorada. Vinte e seis de janeiro de 2019: homem mata ex-mulher e depois se mata. Dois de abril de 2019: homem mata ex-namorada a tiros e tira a própria vida…
São as primeiras linhas do resultado de uma procura na internet com as palavras do título.
Um leitor, Alexandre Carvalho, estranha com razão “a enorme quantidade de assassinatos de mulheres por ex-noivos, ex-namorados, ex-maridos”.
Parece uma epidemia, em todas as classes sociais, todas as regiões do país e, de fato, no mundo afora.
Em culturas tradicionais, mulheres são assassinadas com mais frequência por parentes próximos, que as matam para preservar a “honra” deles. Mas a violência doméstica é internacional e intercultural, assim como o assassinato pelo ex, mesmo anos depois do fim da relação.
Veja uma reportagem recente da BBC: 1) a cada dia, em média, 137 mulheres são mortas por parentes ou parceiros, 2) o assassinato pelo ex acontece do Quênia à França.
Claro, as mulheres também matam seus parceiros, sobretudo como reação à violência e ao abuso. E é muito raro que elas matem um ex-parceiro; com uma pitada de humor negro, alguns dirão que elas preferem deixar o ex em vida e pedir indenização.
Frequentemente, o homem que se torna assassino de sua ex declara ter matado por amor. Em 2008, Ben-Ze’ev e Goussinsky publicaram “In the Name of Love” (Oxford Un. Press; “Em Nome do Amor: A Ideologia Romântica e suas Vítimas”). Eles defenderam a ideia de que a idealização romântica do amor é desastrosa: se o amor for tudo de que precisamos (como cantavam os Beatles), como reagiremos quando alguém nos retira, de repente, aquele “tudo”?
Ze’ev e Goussinsky, em suma, acreditam nos homens que declaram ter matado sua ex por amor: o problema seria que o amor idealizado os enlouquece.
Eu prefiro pensar que um amor possessivo, incapaz de renunciar a quem se separa de nós, talvez não seja amor, ou não deva ser reconhecido como tal.
De qualquer forma, o fato de que, praticamente, só os homens matam as suas ex mostra, neles, uma dependência afetiva que, curiosamente, é quase sempre atribuída às mulheres. Os homens (sobretudo os de botequim) tendem a mostrar sua face macho, “tanto faz, sai uma mulher, entra outra”, enquanto, segundo eles, as mulheres ficariam “choramingando” a separação.
Nesse sentido, fato interessante, que a clínica mostra: em geral, as mulheres são as primeiras a decretar a falência do casal. Mais fatos que insistem em dizer exatamente o contrário do que dizem os homens de botequim.
Uma pesquisa ampla, feita na Universidade Johns Hopkins em 1981 com 4.000 viúvos e viúvas, examinou a relação entre viuvez e esperança de vida. E chegou a várias conclusões relevantes. 1) Para a mulher, a viuvez mal tem consequências, ou seja, uma vez viúva, ela vive em média o que viveria se o marido estivesse ainda vivo. 2) Para os homens, a viuvez é desastrosa: os viúvos entre 55 e 65 anos veem sua taxa de mortalidade aumentar de 60% acima da taxa dos homens casados na mesma idade. Remédio, especialmente para os homens: a esperança de vida não é encurtada pela viuvez se houver um novo casamento dentro de um ano.
Não encontrei o link ao estudo de Johns Hopkins, mas achei uma extensa apresentação no New York Times da época.
A conclusão, irresistível e contrária ao machismo dominante, é que a dependência afetiva de um homem é maior do que a de uma mulher.
Agora, o assassinato da ex, que pipoca mundo afora nas últimas décadas, parece ter também outra causa, muito antiga, mas que é reavivada hoje pela própria liberdade que as mulheres conquistaram. De que se trata?
Para muitos homens, a ideia de que a mulher tenha um desejo próprio é uma abominação, mais um truque do demônio. “E, veja bem, se ela for embora de mim, é para desejar com outro.” O ciúmes aqui é o de menos. O que importa é o princípio: como assim “desejar”?
No lindo texto que conclui “Tomo Conta do Mundo: Conficções de uma Psicanalista” (ed. Arquipélago), Diana Corso lembra a fuga de casa de Nora, a protagonista de “Casa de Bonecas”, de Ibsen. A fuga de Nora, mais de cem anos atrás, parece abrir uma nova era para as mulheres. Concordo, mas, cuidado, na porta da casa de Nora, do lado de fora, ainda há atiradores que preferem vê-la morta a livre.
Por Contardo Calligaris