Coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público paulista, a promotora, finalista na categoria Educação, idealizou o #NamoroLegal, com uma cartilha que traz sete dicas para reconhecer os estágios da relação abusiva, a hora de parar e de pedir socorro. O alvo é o público de 16 a 24 anos que não se reconhece nas campanhas convencionais de esclarecimento
(Marie Claire, 23/09/2019 – acesse no site de origem)
A faixa de 16 a 24 anos é a presa fácil de relacionamentos abusivos que podem evoluir em pouco tempo para um desfecho fatal. Quem alerta é a promotora Valéria Scarance, 48 anos, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público do Estado de São Paulo.
A fragilidade destas mulheres reside em três fatores, aponta ela: pouca experiência de vida, a forma como entram de cabeça e rapidamente no romance e a facilidade com que cedem ao controle do parceiro. “Elas só associam a violência à marca física”, diz a promotora. Não entendem que o ciclo começa bem antes do olho roxo ou dos hematomas no corpo. Vem em etapas, com dominação, sofrimento e isolamento promovidos pelo companheiro. “As campanhas de alerta não atingem as garotas porque elas não se enxergam como vítimas, não percebem os mecanismos de opressão e naturalizam o comportamento agressivo do namorado.”
Por acreditar que a educação é uma poderosa arma para prevenir, Valéria idealizou a campanha #NamoroLegal, do Ministério Público (MP) com apoio da empresa global Microsoft. A peça principal é uma cartilha sob medida para mulheres jovens, com linguagem que elas usam nas baladas, nos aplicativos de paquera e em outras redes sociais. Valéria acertou o tom do discurso com a assessoria do filho, Fábio Scarance Goulart, 17 anos. Ele deu palpites no texto e sugeriu termos mais próximos do público alvo. Por exemplo, o rapaz com quem se quer ficar, ali é crush. Depois de pronta, Fábio levou para amigas e amigos lerem em primeira mão.
A Cartilha #NamoroLegal, dá sete dicas simples, ensina a mulher a identificar os sinais de que está mergulhando em uma roubada e a impor limites. Aponta quando é hora de dar um basta e, se não conseguir, pedir socorro. “Cada capítulo representa um dos sete estágios de evolução de uma relação abusiva”, explica Valéria. “Para não afugentar aquelas que não se vêem como vítimas, só usamos a palavra violência no texto da última dica”, diz a promotora, que concorre na categoria Educação. Resumidamente, as sete são: Dica 1 – Confie nas atitudes. Não nas palavras (ele pode aplicar blá-blá-blás e elogios, mas ser um bruto). Dica 2 – Seu espaço é só seu (valorizar o próprio território físico e mental, não se afastar de amigos e de coisas que gosta só porque o namorado quer). Dica 3 – O “código da boa namorada” (não ir contra a própria vontade e fazer tudo o que o cara quer). Dica 4 – A chave de sua vida (decisões não podem ficar nas mãos dele). Dica 5 – Não vá morar na lua (pé na realidade, manter-se próxima de amigos e da família). Dica 6 – Saia desta montanha russa (sobre os rompantes do namorado, que briga, pede perdão; ela cede e tudo se repete). Dica 7 – A dica de ouro: Sorry, a fera não vira príncipe com o seu amor (é fantasia achar que consertará o namorado) Digital, a cartilha pode ser baixada no site do Ministério Público, e foi lançada numa data bem simbólica: 12 de junho, Dia dos Namorados. “Em pouco tempo viralizou, foi acessada em todos os cantos do Brasil. Vem sendo usada por mães em conversa com as filhas. Sei de professoras que utilizam como material de apoio na escola. E tive notícia também de brasileiros que acessam a cartilha na Austrália”, comenta Valéria.
Logo estará no ar um canal de comunicação direta com as garotas. Recorrendo à tecnologia de Inteligência Artificial, o MP e a Microsof criaram a Maia (Minha Amiga Inteligência Oficial). Trata-se de um bot que vai dialogar com as meninas de forma descontraída sobre namoro seguro e saudável. “A Maia está sendo treinada e deve entrar em ação até o final do ano”, conta Valéria. “Ela não armazenará dados. Vai funcionar como uma boa amiga, que ouve confidências e aconselha.”
“Sou de uma família de educadores. Meu pai era professor da Faculdade de Direito da USP e minha mãe dava aulas em um cursinho preparatório para juízes. Sempre acreditei na educação como forma de disseminar conhecimentos e transformar a realidade. É isso que procuro aplicar na minha atuação como promotora” Valéria Scarance
Para a promotora, divulgar informações corretas é fundamental. Por isso tem se preocupado também com a mídia tradicional. Reconhece que ela tem importante papel mobilizador e uma grande responsabilidade nas mãos. “Graças aos veículos de comunicação não precisamos mais explicar as leis Maria da Penha e do Feminicídio”, diz. “Mas sinto que os profissionais da área precisam de apoio para entender que sua atuação tem grande poder. Que precisam se aproximar com cuidado das vítimas de violência, pois muitas têm medo de se expor e sofrer julgamento moral”, observa. Para isso, na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), onde é professora, Valéria criou a disciplina optativa “Mulher, mídia e violência: como o jornalismo pode contribuir para mudar a realidade?”. A matéria é oferecida a duas turmas, uma só de estudantes de jornalismo e outra para alunos dos demais cursos da instituição. “Proponho um olhar multidisciplinar sobre o assunto, trazendo jornalistas que trabalham com o tema na grande imprensa e profissionais de várias áreas”, explica. Ela é uma voz de referência procurada pela imprensa para comentar os casos de violência doméstica de maior repercussão.
Formada em direito em 1994, na PUC-SP, especializou-se em gênero e enfrentamento da violência contra a mulher. É autora do livro Lei Maria da Penha: O Processo Penal no Caminho da Efetividade, e, até março de 2017, foi coordenadora nacional da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, criada pelo Grupo Nacional de Direitos Humanos, do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais. Em 2013 representou o Ministério Público brasileiro, em uma reunião da Organização das Nações Unidas, em Bangkok, que discutiu a elaboração de um manual para atuar em violência de gênero. No ano seguinte participou do programa Combating Domestic Violence, nos Estados Unidos.
O impacto de Valéria
De acordo com a pesquisa Visível e Invisível 2019, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 42% das mulheres entre 16 e 24 anos sofreram algum tipo de violência em 2018. O programa #NamoroLegal fala diretamente com esse público, pela internet, trabalhando a prevenção. Lançada este ano, a disciplina optativa da PUC-SP atinge, em duas turmas, 50 estudantes, que vão se formar jornalistas mais conscientes da sua atuação na cobertura de violência doméstica.
Por Patrícia Zaidan e Iracy Paulina