Pelo menos quatro projetos de lei, três da Câmara e uma do Senado, foram criadas em 2019 na tentativa de acabar com as cotas que reservam 30% das candidaturas e do fundo partidário a mulheres. O Congresso enfrenta uma briga legislativa sobre o tema: se de um lado há parlamentares querendo acabar com a norma, que faz parte da lei eleitoral, de outro há os que apoiam a ação afirmativa e pedem o aumento da porcentagem para que se chegue à paridade.
(Universa, 10/10/2019 – acesse no site de origem)
É de 1997 a lei que obriga os partidos a reservarem o mínimo 30% de suas candidaturas a um sexo e o máximo de 70% o outro, o que acaba funcionando para mulheres, no primeiro caso, e homens, no segundo. A regra é aplicada em eleições proporcionais, ou seja, em votações para deputados estaduais e federais e vereadores. Como não era seguida ao pé da letra — os partidos reservavam as vagas, mas não as preenchiam — em 2009, quando a palavra “reservar” foi trocado por “preencher” é que houve, de fato, a obrigação legal. Em 2018, uma nova decisão: o STF (Supremo Tribunal Federal) estabeleceu que deveria haver o repasse proporcional do fundo partidário para campanhas eleitorais de mulheres, sendo o mínimo de 30%.
Um dos argumentos dos contrários às cotas é de que a reserva de candidaturas femininas facilitaria os “laranjais”, ou seja, seria o combustível para tantas candidaturas de fachada. Na quarta-feira (4), o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, foi denunciado pelo Ministério Público de Minas Gerais por comandar um esquema de fraude dentro do PSL envolvendo candidatas laranja. O presidente do partido e deputado federal Luciano Bivar chegou a afirmar que “mulher não quer ser candidata” e que, por isso, a lei da reserva de vagas deveria ser alterada.
As três propostas em tramitação na Câmara são de autoria da deputada federal Renata Abreu (Podemos-SP), o que causou um racha na bancada feminina da casa. Para um dos projetos de lei foi pedida a retirada de tramitação, e os outros dois foram apensados, ou seja, se tornaram uma proposta só. Atualmente, aguarda votação na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça).
A deputada, presidente nacional do Podemos, pede o fim da obrigatoriedade do preenchimento das cotas, o que significa que, se os partidos não lançarem candidaturas femininas, eles não serão punidos, apenas terão menos candidatos. Segundo a proposta, a verba de 30% se mantém, mesmo que apenas para uma candidata. Renata é ré em dois processos abertos após ser denunciada por mulheres de seu partido que alegaram terem sido enganadas por ela para preencher o percentual obrigatório. Em nota enviada a Universa, ela afirmou ser “totalmente a favor da cota feminina no processo eleitoral”, o que considera um “espaço legítimo”. “Só não acho justo o sistema vigente excluir os 70% seja de homens ou de mulheres quando os 30% não são preenchidos”, afirma, referindo-se à cassação da chapa caso a regra não seja cumprida.
“As candidaturas laranja não são um problema das mulheres ou da política de cotas, mas dos partidos. Eles é que precisam ser penalizados”, diz a cientista política Teresa Sacchet, pesquisadora em gênero e política da UFBA (Universidade Federal da Bahia).
“Os partidos tendem a esse discurso de penalizar as mulheres, dizendo que a culpa pelos laranjais é das cotas ou que elas são incapazes. Mas tem muitas, como essas que denunciaram a deputada Renata Abreu, que ouviram promessas e foram esquecidas durante a campanha”, afirma Teresa, que é ex-assessora do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome, onde coordenou o Comitê de Gênero e Politicas para as Mulheres entre 2011 a 2014.
No Senado, o projeto de lei que pedia o fim das cotas, de autoria do senador Angelo Coronel (PSD-BA), foi rejeitado em abril pela CCJ (Comissão de Constituição de Justiça) —apenas ele e a senadora Selma Arruda (PSL-RS) foram favoráveis, e o texto foi arquivado.
“Dizer que mulher não gosta de política beira a idiotice”
Líder da bancada feminina na Câmara, a deputada federal Professora Dorinha (DEM-TO) afirma que o grupo de 77 parlamentares é, em sua maioria, contrário ao projeto de Renata. “Ela não chega a ter dez deputadas apoiando”, afirma. “E a CCJ, onde o projeto será votado, tem uma comissão equilibrada. Acredito que não permitirão que isso passe.”
Mesmo que seja aprovado na comissão, o projeto de lei não poderá mais afetar as eleições municipais de 2020. Mudanças precisam ser publicadas pelo menos um ano antes do primeiro turno do pleito seguinte, que será no dia 4 de outubro do ano que vem.
Sobre os argumentos dos partidos de que é difícil encontrar mulheres interessadas em se candidatar, Dorinha é categórica: “Não dá para achar que mulher não gosta de política, que não tem o DNA para isso. É um argumento que beira a idiotice”, diz. A deputada, ao lado de outras integrantes da bancada, apresentou ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) uma proposta para a criação de um órgão que fiscalize o processo das candidaturas femininas nos partidos.
Brasil está atrás da Arábia Saudita em representatividade
Em 22 anos de políticas de cotas, o número de mulheres no Congresso subiu de 5% para 15%. Ainda assim, a taxa continua baixa, se comparada ao resto do mundo. O Brasil ocupa a 133ª posição, entre 193 nações, no ranking mundial de representatividade política. Fica atrás, por exemplo, da Arábia Saudita, onde até hoje mulheres só podem trabalhar se tiverem permissão masculina.
A professora da FGV Direito do Rio de Janeiro Ligia Fabris, que estuda o tema das cotas e participou da audiência do STF (Superior Tribunal Federal) que decidiu pelo repasse de 30% do fundo partidário às mulheres, em 2018, destaca que, mesmo com a verba designada pela lei, a medida ainda não se reflete nas cadeiras ocupadas. “Hoje são cerca de 15% de mulheres no Congresso, nem chegar aos 30% conseguimos”, diz.
“Temos uma posição vergonhosa diante das democracias do mundo. Na América Latina, só estamos na frente do Haiti e empatados com o Paraguai”, afirma Ligia. Para a jurista, o embate no Congresso mostra “a movimentação das forças que se mobilizam pela ampliação dos espaços da mulher na política e a reação a essa tentativa por parte, sobretudo, dos homens, porque esse ainda é um espaço limitado a eles”.
Lei pela paridade é a solução?
Uma proposta do senador Fabiano Contarato (Rede-ES) pede a paridade entre homens e mulheres nas listas de candidaturas dos partidos, ou seja, quer elevar as cotas de 30% para 50%. O projeto está parado desde abril na CCJ, aguardando votação.
Para a professora da FGV, a paridade é o cenário ideal, mas, no momento, o mais importante é evitar que o patamar de representatividade diminua. “Atualmente, por causa desse embate entre parlamentares, aumentar as cotas pela via legislativa está difícil”, diz. “Mas a exigência é válida. Dados de 2016 do TSE sobre filiados a partidos políticos mostram que quase 50% deles são mulheres. Por que a gente ainda não vê isso no Congresso?”
Por Camila Brandalise