Turmas em Porto Alegre são formadas por até 14 homens, que participam de 12 reuniões, que são realizadas uma vez por semana
(GaúchaZH, 31/10/2019 – acesse no site de origem)
Tentando reverter uma cultura de violência contra a mulher, o Judiciário em Porto Alegre promove desde 2011 grupos reflexivos para homens envolvidos nesse tipo de caso. Até dezembro de 2018, dos 601 participantes, apenas 26 voltaram a cometer crime relativo à Lei Maria da Penha. Essa diferença escancara reincidência de apenas 4,3% entre os participantes desse programa.
A juíza Madgéli Frantz Machado, do 1º Juizado de Violência Doméstica de Porto Alegre, destaca que esse número mostra que a iniciativa está surtindo efeito. Segundo a magistrada, dar voz e informação a esses homens, ajuda a desconstruir crenças e conceitos distorcidos perpetuados ao longo do tempo:
— A pessoa pode transformar seu comportamento e pode enxergar as coisas de uma maneira diferente. É capaz de ter um juízo crítico daquelas coisas que tu fizeste, porque a violência doméstica é muito atrelada a isso. A questão da cultura, de você entender o espaço da mulher.
Com tom educativo e reflexivo, a dinâmica desse tipo de encontro lembra outras atividades, como Alcoólatras Anônimos. As turmas são formadas por até 14 homens, que participam de 12 reuniões, que são realizadas uma vez por semana. Tipos de violência contra a mulher e controle de impulsos estão entre os temas tratados. Esse trabalho ocorre em paralelo aos grupos voltados às mulheres vítimas de violência doméstica.
Os homens são encaminhados ao projeto via determinação judicial em razão de medida protetiva, condição para ser solto, para não ser preso ou em razão de condenação.
Antes de se juntar à turma, os participantes passam por uma entrevista individual. As duas primeiras sessões do grupo servem para criar um vínculo entre os homens envolvidos em caso de violência doméstica, segundo a psicóloga Ivete Vargas, que coordena o projeto no 1º Juizado de Violência Doméstica da Capital.
Essa iniciativa se espraiou para demais municípios gaúchos, entre eles, Caxias do Sul, Pelotas, Rio Grande, Santa Maria, São Leopoldo, Novo Hamburgo e Dom Pedrito. Comarcas de cidades que pretendem aderir à iniciativa encaminham profissionais para passar por treinamento específico do Centro de Formação e Aperfeiçoamento do Poder Judiciário do RS (CJUD). O trâmite não é uma obrigação, mas é de praxe na busca pela qualificação do serviço.
Reflexão ajudando na prevenção
Os grupos reflexivos de gênero são uma das consequências da Lei Maria da Penha. A norma também incentiva a criação de “centros de educação e de reabilitação para os agressores”.
A psicóloga Ivete Vargas, que coordena o projeto na Capital, ressalta que os grupos voltados aos homens vão além de resolver o caso individual de cada um deles, pois têm caráter preventivo, atingindo o círculo familiar e de amigos dos participantes.
— É altamente preventivo. Comecei a ver isso já nos primeiros grupos. No primeiro grupo, os homens diziam assim “está sendo muito bom para mim, porque eu não conversava com minha ex-mulher. Resolvi colocar na minha cabeça que o que importa por mim é minha filha, estou me dando bem, estou conseguindo conversar. Quando vejo que a coisa está boa, eu saio de perto”. Então, ele conseguiu administrar situações que não conseguia antes —relatou a psicóloga.
“É só a partir da mudança de cultura que a gente vai conseguir acabar realmente com a violência contra as mulheres” – Renata Jardim, Coordenadora de programas da ONG Themis
A juíza Madgéli acredita que certas atitudes dos pais dentro de casa acabam refletindo no comportamento dos filhos, que passam a reproduzir condutas inadequadas. Segundo ela, a educação e a reeducação são pilares importantes para reverter culturas violentas impregnadas nas relações familiares.
— A educação é o ponto por qualquer transformação. Seja de quem nunca praticou uma situação de violência, para você prevenir mesmo, trabalhar e desenvolver esse cidadão com essa perspectiva de igualdade, de respeito, de reconhecer as diferenças, seja daquele que já praticou uma violência, mas consegue se rever, se reconstruir — pontua a juíza.
Coordenadora de programas da ONG Themis, a advogada Renata Jardim, reconhece que iniciativas como as desenvolvidas pelo Judiciário gaúcho são positivas, pois ajudam a reverter a cultura do machismo no país por meio da ressocialização e da educação.
— O que a gente percebe, acompanhando essas experiências é que elas são bastante exitosas. É um pouco do que as políticas públicas e os programas de enfrentamento à violência vêm nos trazendo. As pesquisas têm mostrado isso, que é só a partir da mudança de cultura que a gente vai conseguir acabar realmente com a violência contra as mulheres.
Renata destaca a necessidade de um acompanhamento frequente em relação a esses casos, pois algumas vezes a reincidência não ocorre de maneira oficial, pois as mulheres agredidas evitam procurar as autoridades para denunciar o novo comportamento abusivo. A advogada também cita a importância de mais incentivo do poder Executivo para políticas públicas nesse sentido, reforçando a rede de apoio contra a violência doméstica.
— Ainda não existe um financiamento específico para isso. Não existem diretrizes, como normas técnicas de uniformização dos centros de referência. A gente tem pouca uniformização de como deve se dar esses grupos. Ainda é um desafio. A gente precisa primeiro pensar em normatizar, ver quais são as boas experiências que podem ser replicadas em outros espaços — diz a advogada.
“Conscientizar o agressor de que ele não pode fazer esse tipo de coisa é muito importante” – Claudia Sobreiro de Oliveira, Presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-RS
A advogada Claudia Sobreiro de Oliveira, presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-RS reforça a importância de incluir os homens nos debates sobre violência contra a mulher, destacando os baixos índices de reincidência entre os participantes de grupos reflexivos. Claudia afirma que a sociedade ainda tem dificuldade de entender e reconhecer os direito das mulheres, que é um fator importante nesse enfrentamento:
— Conscientizar o agressor de que ele não pode fazer esse tipo de coisa é muito importante. E o que precisa também ficar bem entendido é que o agressor que se fala não é só o físico, aquele que espanca. A agressão também é psicológica, financeira. Temos diversos aspectos que precisam ser divulgados, e que realmente constituem na nossa legislação violência contra a mulher.
Encontro baseado em diálogo
A reportagem de GaúchaZH acompanhou no dia 30 e outubro, uma quarta-feira, a sessão de um dos grupos reflexivos para homens. Em uma sala no terceiro andar do prédio um do Fórum Central de Porto Alegre, seis homens com idades que variam entre 20 e 70 anos sentavam em cadeiras que formavam um círculo. Café, água e bolachas estão à disposição dos presentes.
Logo na abertura do encontro, a psicóloga Ivete Vargas coloca um vídeo que resume a história de Maria da Penha e do processo que levou à criação da lei que leva o nome dela, alvo de dois atentados promovidos pelo então marido, na década de 1980.
No início do vídeo, os homens conversam em tom mais baixo, destacando que conhecem a história da cearense, mas em seguida focam na exibição do material. Na sequência, a coordenadora lê trecho do livro Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus.
Após essa fase, Ivete tenta criar junto aos participantes uma discussão sobre os temas. Os homens demonstram timidez, mas tecem comentário sucintos sobre o que acabaram de ver. Uns demonstram surpresa em relação à história de vida de Maria da Penha.
— Ele queria matar mesmo — pontua um deles sobre o agressor.
_ Ela parecia estar bem consciente. Parece que não aconteceu nada com ela — afirma outro, chamando atenção para a força e determinação de Maria da Penha.
O encontro presenciado pela reportagem era o oitavo da turma, que começou com 11 pessoas e conta com a presença frequente de sete atualmente. Os participantes não focaram nas agressões que os levaram ao grupo.
Após essa primeira conversa, Ivete passa para um dos presentes um jacaré de pelúcia, que marca o início da sequência de explanações. De certa forma, esse ato simbólico quebra o resquício de relutância que ainda marcava presença no recinto. Na primeira rodada, os homens precisam dizer o que acharam das duas histórias expostas no início da sessão. Em seguida, são provocados a falar sobre crenças da infância, que caíram por terra com o tempo. Medo de assombrações e existência do Papai Noel estão entre os temas citados.
“A punição tem que existir” – Integrante do grupo que não quis ser identificado
A psicóloga usa o debate para ressaltar a importância de desconstruir certas crenças para enfrentar problemas culturais e que criam comportamentos abusivos. Alguns homens demonstram uma espécie de contrariedade em relação às agressões que os levaram a ser enquadrados na Lei Maria da Penha, mas em seguida refletem que esse tipo de ressocialização é importante.
— Não nego para ninguém. Foi um empurrão que dei na minha ex-namorada e me incomodei. Um empurrão. Ela caiu no sofá do apartamento e me incomodei. Cada um tem um problema e tem de existir isso aí, a punição. Não interessa se tu cortou a cabeça ou deu um empurrão, a punição tem que existir — relata um dos integrantes do círculo, enquanto chacoalhava o jacaré de pelúcia com movimentos leves contra a perna.
— Eu mesmo, às vezes, nessa situação que estou, me sinto um pouco injustiçado, mas também faço a reflexão e penso “bah, beleza” — resume outro.
Durante as cerca de duas horas de sessão, os homens demonstram vínculo entre eles e as discussões sobre os temas sugerido vão fluindo e desencadeando outras reflexões. Ao fim, Ivete cumprimenta todos com um abraço e um beijo no rosto, esperando o retorno dos “alunos” para o próximo encontro.
Por Anderson Aires