Se precisarmos desenhar para que tanto os apoiadores mais fiéis quanto os críticos que apontam os dedos na direção errada entendam por que Bolsonaro cruzou a linha do aceitável em ataque contra jornalista, é isso que vamos fazer.
(HuffPost Brasil, 19/02/2020 – acesse no site de origem)
Lendo a repercussão no Twitter sobre a declaração absurda do presidente da República sobre a repórter Patrícia Campos Mello eu não consigo parar de pensar que “o mundo está ao contrário e (quase) ninguém reparou”.
Que surreal é pensar como Bolsonaro se sente tão à vontade para descer tão baixo no posto mais alto da nação.
Presidentes como Trump e Bolsonaro já deixaram claro que estão dispostos a desconstruir qualquer grau de solenidade que o posto da Presidência ainda tenha (e por aqui já estávamos alguns degraus abaixo, considerando os últimos governos).
Mas partir para o ataque público de forma tão grotesca, na porta do palácio presidencial, pode ser interpretado, inclusive, como crime: a lei 1.079, de 1950, estabelece como “crime de responsabilidade contra a probidade na administração proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.
Sim, é mais do que simples baixaria.
E tão surreal quanto a tranquilidade de Bolsonaro para agir assim é ver seus apoiadores (e as apoiadoras, em especial), seja em frente ao Alvorada, na Câmara ou no Twitter, rindo, aplaudindo e defendendo uma declaração machista e nojenta só porque foi contra uma jornalista que entra no rol das inimigas do presidente.
Aqui não se trata mais de estar ao lado do presidente por você estar grato que ele “tirou o PT do poder”. Até quando dá para respaldar falta de decoro do presidente sob esse argumento?
Outro movimento, no entanto, também me chamou atenção no chorume que se vê no Twitter: o dos que criticam os jornalistas por saírem em defesa da repórter da Folha “depois de permitirem que Bolsonaro fosse eleito”. Li coisas como “é corporativismo”, “agora é tarde”, “olha aí o que vocês deixaram acontecer, agora lidem com isso”.
Bolsonaro foi eleito por 57.797.847 de brasileiros, cujos votos têm tanto peso quanto o de quem discorda de seu governo. É da democracia. O trabalho do jornalista é entender o cenário e reportá-lo da forma mais fiel. E não poderia ser diferente em 2018.
Agora há que se apontar quando o presidente em exercício cruza a linha do aceitável.
E não é só por ser um ataque de tão baixo nível contra uma jornalista. É por ser mulher e é por ser uma cidadã pela qual Bolsonaro, ao se tornar presidente, também deve governar — e respeitar.
E se a gente precisar desenhar para que tanto os apoiadores mais fiéis a Bolsonaro quanto seus críticos que apontam agora os dedos na direção errada entendam, é isso que vamos fazer.
Afinal, é esse também o nosso papel quando o mundo está ao contrário.
Isabel Fleck é editora-executiva do HuffPost Brasil