Um caso reabriu o debate sobre as implicações legais e morais do procedimento e pode ter repercussões em toda a região
(Celina/Globo.com, 02/03/2020 – acesse no site de origem)
Um tribunal superior da Colômbia deve decidir nos próximos dias se deve ou não permitir o aborto durante os primeiros meses de uma gravidez. A decisão pode ser um marco na América Latina e ter um efeito cascata em uma região conhecida por suas leis restritivas.
— Com sorte, este será um caso que faz história — afirma Paula Avila-Guillen, advogada colombiana e defensora dos direitos reprodutivos das mulheres.
A Colômbia não é apenas uma das nações mais populosas e culturalmente influentes da América Latina, mas sua alta corte é amplamente considerada uma formadora de tendências legais.
Os defensores da legalização dizem que uma decisão a seu favor anunciaria uma mudança em uma região impregnada de tradições católicas conservadoras que há muito tempo limitam o aborto. Mas os oponentes temem exatamente isso.
— Seria uma decisão irresponsável, isso só vai aumentar a quantidade de danos causados às mulheres — afirma Natalia Bernal, professora de direito e contrária a legalização do aborto.
A decisão do tribunal, que não pode ser alterada por outros órgãos legais, pode chegar já nesta segunda-feira. E resultará de um caso que não foi apresentado por um defensor do direito ao aborto, mas sim pela professora, de 43 anos, que havia pedido uma proibição total do procedimento.
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Natalia Bernal, que mora na França, pediu ao tribunal que eliminasse as poucas exceções existentes na lei colombiana que permitem abortos legais. Em vez disso, o tribunal decidiu considerar legalizar amplamente a prática.
A decisão da corte de levar adiante seu caso intensificou um debate já feroz na Colômbia sobre as implicações legais e morais do procedimento. Nas últimas semanas, ativistas de ambos os lados desceram à capital, Bogotá, discutindo se o Estado ou as mulheres devem decidir quando um aborto pode ser realizado.
O Tribunal Constitucional da Colômbia há muito é considerado um dos mais liberais da região e é conhecido em particular por decidir em favor dos direitos das mulheres. Mas sua decisão final neste caso está longe de ser óbvia.
Os juízes estão considerando uma decisão proposta por um de seus colegas mais liberais, Alejandro Linares. Ele é a favor da legalização do aborto nos primeiros quatro meses de gravidez, argumentando que obrigar uma mulher a ter um filho a força é dar o controle de seu corpo a outras pessoas, incluindo o Estado, de acordo com partes de sua proposta relatadas na mídia colombiana. Cinco dos nove juízes da Corte devem assinar sua interpretação da lei.
Em uma decisão de 2006, o Tribunal Constitucional permitiu o aborto em três circunstâncias: quando a vida da mãe está em risco, quando o feto tem sérios problemas de saúde e quando a gravidez resulta de estupro.
Seis juízes mostraram em decisões anteriores que apoiam a decisão de 2006, segundo Mariana Ardila, advogada colombiana que é a favor da legalização.
Mas não está claro se esses juízes estão dispostos a ir além, um ponto com o qual muitos na Colômbia também parecem estar lutando. Os juízes ainda podem rejeitar completamente a proposta de Alejandro Linares e decidir a favor de Natalia Bernal.
Embora a Colômbia seja mais politicamente conservadora do que muitos de seus vizinhos, recentemente liberalizou políticas em algumas questões sociais. O país legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2016, e uma de suas políticas mais poderosas, a prefeita de Bogotá, é uma lésbica que recentemente se casou com uma senadora.
Muitas das recentes mudanças liberais da Colômbia, incluindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo, resultaram de decisões do Tribunal Constitucional. Pela primeira vez em sua história, três dos nove magistrados do tribunal são mulheres.
Das poucas nações do mundo que não permitem o aborto sob nenhuma circunstância, pelo menos cinco estão na América Latina e no Caribe: Nicarágua, El Salvador, Honduras, Haiti e República Dominicana.
Alguns lugares da região legalizaram o aborto, permitindo que as mulheres procurem o procedimento mediante solicitação, sem precisar provar que foram estupradas ou que uma gravidez põe em risco suas vidas. Eles incluem Cuba, Guiana, Uruguai, Cidade do México e o estado mexicano de Oaxaca.
Na Argentina, um esforço no ano passado para legalizar o aborto foi derrotado, mas ajudou a galvanizar os movimentos de direitos reprodutivos em toda a região. Agora, os legisladores estão novamente considerando a legalização, desta vez com o apoio do presidente.
A Colômbia agora exige que todas as instituições de saúde realizem a interrupção voluntária da gravidez se uma mulher ou menina se encaixar em uma das três exceções. Mas, segundo Paula Avila-Guillen, que trabalha no Women’s Equality Center (Centro de Igualdade das Mulheres), com sede em Nova York, na prática os médicos frequentemente se recusam a realizar um aborto, afirmando que uma mulher não atende a nenhum dos requisitos.
Ela acrescenta que o acesso é particularmente limitado para mulheres pobres que vivem fora de cidades como Bogotá. Muitas nem sabem que um aborto legal é possível.
Os chamados “procedimentos da porta dos fundos” são comuns e podem resultar em sentenças de prisão de um a três anos para mulheres. Nos piores casos, levar à morte.
Durante a última década, a Colômbia investigou 4.802 pessoas por terem realizado ou ajudado a realizar abortos ilegais, de acordo com o procurador-geral do país. A grande maioria eram mulheres. Pouco menos de 500 tinham menos de 18 anos. Quatro tinham menos de 14 anos.
Natalia Bernal afirma que em 2014 começou a estudar o aborto, conectando-se a grupos americanos como o Center for Bio-Ethical Reform (Centro de Reforma Bioética) e Pro-Life Action League (Liga de Ação Pró-vida). “Decidi me dedicar ao feto”, ela afirma.
Durante anos de conversas com esses grupos, ela reuniu uma biblioteca de informações – fotografias, vídeos, estudos – que a convenceram de que os métodos de aborto eram formas de tortura. Seu pedido abriu um exame mais amplo da lei.
Em um café da manhã com repórteres no mês passado, o presidente da Colômbia, Iván Duque, disse que a decisão de 2006 de conceder exceções foi “um grande avanço”, mas que ele não era a favor de ir além dessa decisão. Em um país que ele descreveu como tendo “machismo excessivo”, disse temer que o aborto se tornasse uma forma padrão de contracepção.
Outros em Bogotá relataram uma luta semelhante sobre até onde a lei deve ir. Felipe Ríos, de 38 anos, pai de dois filhos que trabalha com segurança no palácio presidencial, disse que um membro da família fez um aborto recentemente depois de saber que sua gravidez colocava em risco sua vida. Apesar de apoiar a decisão, conta ter sido difícil para toda a família. Mas ele não acredita que a prática deva ser permitida mais amplamente.
— Se uma mulher engravida, é um dever ter o filho. Considero mais corajoso para uma mulher ter o bebê e colocá-lo para adoção — ele afirma.
Aixa Mejilla, estudante de 18 anos, cresceu em um lar para meninas com famílias em circunstâncias difíceis. Ela não acha que as mulheres devam ser forçadas a ter filhos se não puderem ou estiverem prontas para cuidar deles.
— As mulheres deveriam ter a opção — defende.
Por Julie Turkewitz, do New York Times
Jenny Carolina González contribuiu com a reportagem