“Vítimas estão encurralada”, diz advogada especialista em direitos das mulheres
(Universa/UOL, 27/03/2020 – acesse no site de origem)
A quarentena na China para conter a disseminação do novo coronavírus completará dois meses com um efeito colateral: os casos de violência doméstica triplicaram. Se o mesmo ocorrer no Brasil — e é isso que preveem órgãos internacionais de proteção feminina, como a ONU Mulheres —, o número de casos pode ter, em alguns meses, um aumento igual ao que foi registrado em anos.
Em relação aos outros tipos de violência, especialistas ouvidas por Universa afirmam que há mais dois grandes perigos desse período: o aumento de casos de violência sexual, principalmente contra crianças, e as tentativas de feminicídio.
Isso não significa, porém, que o isolamento social é o culpado pelo caos.
“A violência contra a mulher já era uma epidemia antes do coronavírus. Agora, será potencializada. A gente precisa tentar proteger as vítimas ao máximo, e não fingir que não vê”, afirma a advogada Gabriela de Souza, do escritório Advocacia para Mulheres, de Porto Alegre. “Nos últimos dias, recebi mais pedidos de ajuda por ameaças de morte do que havia recebido em meses.”
Por que a violência contra mulher aumenta durante quarentena?
Como explica Gabriela, os fatores que levam ao aumento de violência são o maior tempo de convivência e a sobrecarga de estresse em um momento de insegurança, como o que vivemos, fazendo com que a tensão se intensifique. Além disso, pontua, a rede de apoio que poderia acolher essa mulher está parada, o que faz o agressor ter certeza da impunidade.
“A mulher não pode ir para a casa de alguém, da mãe, por exemplo, como costuma acontecer. Não consegue falar com uma amiga para pedir ajuda, justamente porque não está em segurança na mesma casa que o seu agressor. Ele pode ouvir e a situação ficar pior”, diz.
“Os centros de acolhimento de assistência social também estão fechados, assim como o Ministério Público. Os hospitais estão à beira do caos. As delegacias trabalhando em regime de plantão. A vítima se vê encurralada.”
Para Ana Claudia Victoriano, especialista em políticas públicas para mulheres e mestranda em educação, gênero e violência pela Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto, a insegurança econômica também explica o agressor se tornando mais violento.
“O homem com as incertezas vai ter medo de perder o poder, de ter controle sobre algo. Ele ainda é educado para ser o responsável pelos proventos do lar. E aí, com a crise, o desemprego, essa insegurança faz com que ele tenha atitudes mais agressivas”, diz.
Mulheres mais pobres estão mais vulneráveis
Presidente do Sindicato de Polícia do Estado de São Paulo, Raquel Gallinati opina que as mulheres de menor renda podem estar mais vulneráveis por ter mais dificuldade de acesso à informação ou mesmo de órgãos de proteção da vítima.
“Além disso, em comunidades mais carentes, a situação da residência, muitas vezes pequena e com um cômodo, obriga o contato constante entre as pessoas, o que certamente potencializa o risco de violência”, diz.
“É essencial que, neste momento, sejam divulgadas mais informações sobre o 180, sobre a possibilidade de fazer uma denúncia pela internet e sobre acesso às autoridades para que elas possam se proteger e, principalmente, tentar
enfrentar essa situação de violência dentro de sua própria residência”, afirma.
Estupros: maioria dos casos é contra meninas e dentro de casa
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, uma menina de até 13 anos é estuprada a cada 15 minutos no Brasil. Os crimes referentes a essa faixa etária representam 53% de todos os estupros cometidos no país. E em 76%, o agressor é conhecido da vítima: na maioria das vezes, são pais e padrastos.
“Como as crianças estão em casa e o abusador também, o risco aumenta absurdamente. Precisamos alertar os cuidadores sobre esse risco, que fiquem mais atentos às crianças, principalmente à noite e de madrugada, pois eles têm o hábito de acessar as vítimas enquanto todos estão dormindo”, alerta a médica especialista em violência sexual Mariana da Silva Ferreira, que dá cursos e palestras sobre o tema.
Casos aumentarão, mas registros vão diminuir
Mariana prevê que, com o isolamento, as denúncias formais, feitas em delegacias, de violência contra a mulher tendem a diminuir e, com isso, reduzir ainda mais os números, que já são subnotificados.
Isso já está acontecendo. Em Santa Catarina, os registros de ocorrência de violência doméstica caíram 65% na
quarentena. No dia 15 de março, três dias antes do decreto que suspendeu os serviços no estado, foram 285 registros.
Uma semana depois, no dia 22, não passaram de 100.
“A população pode achar que não pode ir à delegacia, que não terá atendimento. Na verdade, para essa modalidade de violência, as delegacias atenderão normalmente durante a pandemia”, diz Mariana.
Feminicídio: ponto mais grave da violência doméstica
“O feminicídio, que é o crime cometido por causa do gênero da vítima, é a última escala da violência doméstica. Se aumenta na base, aumenta no topo”, explica Gabriela, do escritório Advocacia para Mulheres, que já viu crescerem os pedidos de ajuda por ameaças de morte.
“É o ponto mais grave. Quando esses casos começam a crescer é porque lá embaixo as primeiras violências já explodiram. Tapas, puxões de cabelo, empurrãozinho, até coisas que a mulher não percebe, como dizer que a comida está ruim”, afirma.
“O Brasil é o quinto país no mundo com mais mortes de mulheres, não vai mudar agora. Assim como o vírus é uma
pandemia, a violência contra a mulher também é”, diz Ana Claudia Victoriano.
Como pedir ajuda?
Se for possível, ligue para o 180. O serviço é do governo federal, gratuito e anônimo, e a pessoa que atender passará
informações sobre locais que estão abertos próximos a você, onde poderá pedir ajuda.
A Casa da Mulher Brasileira segue aberta para receber vítimas de violência, assim como as casas abrigo, que acolhem mulheres em risco.
As delegacias estão atuando em regime de plantão e o atendimento pessoal é restrito a alguns crimes, entre eles os de
violência doméstica e violência contra criança ou adolescente. Teoricamente, portanto, devem priorizar o atendimento às mulheres.
Gabriela salienta para a necessidade de prestar ajuda. “Se ouviu sua vizinha pedindo socorro, faça algo. Não conseguiu fazer nada na hora? Puxe conversa pela janela em algum momento posterior, para criar confiança. Se precisar, chame a polícia. Não podemos mais fingir que não vemos. É um problema de todos nós.”
Por Camila Brandalise
De Universa