CARTA ABERTA AO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA
A Organização Tamo Juntas, associação da sociedade civil voltada ao acolhimento multidisciplinar de mulheres em situação de violência e vulnerabilidade social, CNPJ 25.244.218/0001-12, vem a público manifestar preocupação com o fim do prazo de cumprimento das medidas protetivas vigentes no contexto da política de isolamento que tem sido adotada nos municípios baianos com casos confirmados de COVID-19.
Dados recentes têm apontado que a violência doméstica e familiar tende a crescer no contexto de isolamento – é o que demonstra a realidade paulista, fluminense e gaúcha. Além disso, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos registrou aumento de nove por cento das denúncias de violência doméstica e familiar desde o início da política de isolamento. Este aumento que temos verificado no Brasil é uma realidade global, considerando que países como a China e Portugal verificaram o mesmo fenômeno, demonstrando um índice ainda mais expressivo na medida em que se prolonga a reclusão.
A ONU Mulheres, em publicação de março de 2020, destacou os impactos específicos que a pandemia da COVID-19 apresenta na vida das mulheres, dentre eles o aumento da violência doméstica e familiar em um contexto de emergência, salientando, igualmente, a necessidade dos governos em manter políticas de proteção às vítimas e em adotar medidas urgentes para combater a violência doméstica no curso da pandemia.
Há de se ter em vista que as mulheres estão na linha de frente nos cuidados em saúde da população afetada pelos sintomas desta nova doença, assim como são as principais responsáveis pelos cuidados com os membros da família e pelas tarefas domésticas. Estima-se que pouco mais da metade dos lares baianos sejam chefiados por mulheres, segundo os dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, divulgados em 2018.
Ainda que o trabalho produtivo tenha sofrido contundente refreamento, o trabalho da reprodução social da vida segue intenso nos cuidados individuais e coletivos para que as pessoas não sejam infectadas pelo SARS-CoV 2, e o protagonismo deste trabalho é feminino. As mulheres, mais uma vez, demonstram sua relevância na defesa de interesses comunitários. Nada mais justo, portanto, exigirmos reconhecimento e solidariedade com nossas as mulheres que se encontram em situação de violência.
Por isso, pleiteamos que o Poder Judiciário baiano adote medidas adequadas no enfrentamento à violência doméstica e familiar a fim de proteger o direito à vida das mulheres. Dentre essas medidas, destacamos a necessidade da renovação automática das medidas protetivas de urgência hoje vigentes, desde o início do isolamento até 30 dias após o reestabelecimento dos serviços públicos, como forma de garantir a proteção das mulheres em situação de risco.
Consideramos tal medida necessária, urgente e viável do ponto de vista jurídico, uma vez que as medidas protetivas de urgência independem da existência de inquérito ou de ação penal em curso. Além disso, a Lei Maria da Penha não prevê em seu texto prazo específico para a manutenção das medidas protetivas, devendo estas perdurarem pelo tempo em que se fizerem necessárias. Assim, o pedido aqui apresentado de renovação automática somente é necessário porque a jurisprudência deste Tribunal criou um prazo de seis meses para as medidas protetivas, a ser renovado mediante pedido da parte autora, o que em nosso entendimento contraria a legalidade.
A renovação automática das medidas protetivas de urgência em decorrência da pandemia não viola qualquer direito; do contrário, a revogação das medidas sem a verificação de que a mulher em situação de violência de fato encontra-se a salvo de novas violações de direito é o que verdadeiramente ofende o compromisso firmado pelo Estado brasileiro no enfrentamento à violência doméstica e familiar.
Ressalta-se que tanto o Poder Judiciário quanto o aparato de segurança pública no estado encontram-se com restrições de atendimento ao público. Além disso, a maioria das mulheres em situação de violência são acompanhadas pela Defensoria Pública, que também se encontra com restrições em seu atendimento; essas mulheres em sua maioria também são vulneráveis economicamente, dependem do transporte público que também está com a frota reduzida, não possuem acesso livre à internet e a outros meios de acesso à informação.
Do ponto de vista legal, fundamentamo-nos no reconhecimento do estado de calamidade pública em âmbito federal (Decreto legislativo n° 6/2020) e estadual (Decreto n° 64.879, de 20/3/2020); na recomendação de recolhimento domiciliar pela Organização Mundial da Saúde (OMS), Ministério da Saúde e o Decreto do Governo do Estado da Bahia instituindo quarentena (Decreto n° 19.529, 16 de março de 2020); na Resolução n° 313 do CNJ, determinando a suspensão de todos os prazos processuais até dia 30 de abril de 2020; nas disposições da Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002); na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996) e na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006).
Portanto, ao levarmos em consideração que a atual política de isolamento prejudica a livre manifestação das mulheres em situação de violência pela continuidade das medidas protetivas, e que, em um contexto de isolamento, a denúncia por chamada telefônica representa verdadeiro perigo para a denunciante, requeremos a renovação automática das medidas protetivas de urgência, considerando o prazo do início da quarentena (16 de março de 2020) até 30 dias após o reestabelecimento integral dos serviços, é a decisão mais acertada, correspondendo a melhor interpretação dos institutos legais e concretização dos direitos humanos das mulheres.
Na oportunidade, expressamos os mais elevados protestos de consideração.
Salvador, 30 de março de 2020.
LAINA CRISÓSTOMO SOUZA DE QUEIROZ
Co-Fundadora e Presidenta da TamoJuntas