Não custa insistir: as responsabilidades e tarefas de cuidado com a vida devem ser coletivas.
(Folha de Pernambuco, 30/03/20 – acesse no site de origem)
Quando penso hoje na minha mãe com 5 crianças sempre famintas em casa, se virando para inventar coisas para nos acalmar (cachorro quente, mingau, vitamina de abacate, pipoca, pão com salame, banana amassada, frutas do quintal…) imagino como aquilo devia ser trabalhoso. Que brava! heroica! Lembranças de uma família de classe média, claro. De uma mesa na qual nunca faltou a comida que agora deve estar faltando, ainda mais, em milhares de lares brasileiros. Imagine a sensação de impotência e dor ter que lidar com crianças com fome, quando não se tem nada a lhes oferecer. E esses 600 reais que sabe-se lá quando chegarão às mesas de uma parte das pessoas?!?! Nunca ficou tão gritante a hipocrisia dos que dizem defender a vida negando a maternidade como direito para as mulheres! Ser mãe é mais que parir, poder criar filhos/as em ausência de ameaças permanentes.
Em dias de quarentena recebo algumas piadinhas machistas e sem graça de maridos que não aguentam mais suas esposas pedirem para que levantem do sofá e façam alguma coisa. Talvez essa imagem não tenha fronteiras de classe social. São as relações de gênero, que perpassam todas as classes, ainda que de forma distinta. Tem gente que continua trabalhando para não perder o emprego ou porque senão não entra nada em casa. Relações de gênero, no Brasil com Bolsonaro, podem estar mais evidentes porque renaturalizadas, vide o aumento dos casos de violência doméstica no período de quarentena. A violência contra as mulheres já era maior nos finais de semana, quando os homens estão de folga. Porque eles se sentem tão humilhados e irritados com esta proximidade ao doméstico, universo relegado historicamente às mulheres? Vem daí também a dificuldade que os intelectuais de esquerda têm de ler o mundo com uma perspectiva de gênero e de raça?
Remetendo a questões culturais, lembrei de algumas semanas passadas no Canadá, em Toronto, para um curso de inglês. De tarde costumava ver um pouco de televisão para exercitar a audição da língua. Adorava programas relacionados à cozinha. Em um deles, um pai que ficava em casa, e que era um verdadeiro chef, ensinava coisas deliciosas e simples a fazer para as crianças nos intervalos das brincadeiras, enquanto também pensava e armava o almoço e o jantar. Tinha outro que me chamava mais a atenção: uma casa em que a mãe não gostava muito de cozinhar era visitada por uma consultora que buscava responsabilizar toda a família, inclusive crianças a partir de determinada idade, com estas tarefas. Ela organizava uma agenda em que cada dia caberia a uma pessoa da casa preparar a refeição. Se o garoto era bom em hambúrgueres, propunha a ele um cardápio relacionado: hambúrguer com salada, sem o pão ou batatas, por exemplo, preocupada em fazer com que as refeições fossem também mais saudáveis. Se o pai era bom com as massas, ou não era bom em nada, propunha algo saudável que não fosse tão difícil dele aprender a fazer. E a mãe, como as outras pessoas, tinha apenas o seu dia no rodízio de ir para a cozinha. O cardápio e a distribuição era pra várias semanas. A consultora voltava para acompanhar e certificar se aquilo contribuía para mudar os hábitos da família.
Eu adorava esses programas porque eles criavam um deslocamento da ideia de que a mulher e mãe, por ter sido responsável pela amamentação, tinha que passar o resto da vida cuidando de alimentar a família. Isso vale para todas as tarefas da casa, que devem ser da responsabilidade de todos/as que nela habitam. Aliás, como temos visto, este tem sido um tempo que convida a arrumar a casa: guarda-roupas, livros, discos/CDs, brinquedos, além de limpar chão, lavar banheiro, coisas que precisam ser feitas com mais frequência quando as pessoas estão o tempo todo em casa. Nada mais justo e democrático que cada pessoa tenha uma parte destas tarefas sob sua responsabilidade, em igual medida.
E o que fazer para garantir a higiene necessária, nestes tempos com ameaça de contaminação por todos os lados, quando falta água em casa? Entendendo que a responsabilidade com os cuidados devem ser coletivas, o Fórum de Mulheres de Pernambuco (FMPE) que mantém as conversas em grupo de WhatsApp, elaborou um precioso documento de orientação para aquelas famílias que estão nesta situação. Segundo Pergentina Vilarim, coordenadora do Fórum, “os movimentos de mulheres e feministas têm contribuído para visibilizar as desigualdades existentes entre as mulheres e buscam fortalecer as redes de solidariedade neste momento em que as mulheres estão piradas de medo. Mesmo sendo da classe trabalhadora, algumas em situação de vulnerabilidade, todas as integrantes do FMPE contribuem. Quem tem dinheiro, alimentos, e pode, compartilha. Quem tem só atenção e escuta doa seu tempo, sua empatia. Tudo porque somos feministas!”.
Organizações e movimentos feministas estão oferecendo uma série de canais para apoiar as mulheres neste período de pandemia de Covid-19. Só para ilustrar: o Grupo Curumim oferece orientação a gestantes da Região Metropolitana do Recife; a Casa Mãe está fazendo um mapeamento emergencial para mães que se encontram em situação de vulnerabilidade causada ou agravada pelo coronavírus. O Coletivo espanhol Calala produziu um manual de autocuidado físico, emocional e digital em tempos de pandemia: práticas e recursos. Já o manual de “redução de danos em tempos de corona vírus: dicas de prevenção para profissionais do sexo” pode ajudar nos cuidados ao namorar.
Há páginas de organizações de toda a América Latina orientando, às vezes acolhendo e apoiando, procedimentos para os casos de violência contra as mulheres. Liguei para o 180 do governo federal e a informação é de que este é o canal para registro de denúncias e que orientam ir ao CRAS mais próximo, que funciona nos horários comerciais. Em caso de emergência recorrer ao 190. Como se sabe, há estados e municípios mais ou menos preparados para estes atendimentos. Muitos deixaram de receber recursos federais para atendimento especializado, desde que assumiu um governo determinado a investir na violência e na morte. Mas, é o que temos por hora.
Há uma série de iniciativas solidárias acontecendo a partir da sociedade. Você, homem ou mulher, além de dividir as tarefas de casa, pode se engajar em alguma delas, ou criar a sua e mobilizar outras pessoas. Pode ao menos somar forças nas campanhas pela renda mínima. Há muito o que fazer, tanto em casa quanto pelo bem comum.
Recebo um outro vídeo de um marmanjo sentado sem camisa no sofá – porque a mãe foi colocar a roupa de rua dele pra lavar – se achando muito engraçado. Reclama que a mãe fez a lista de compras sem relacionar os produtos na mesma ordem da distribuição nas prateleiras do supermercado, entre outras besteiras. Pasmem!!! Penso: uma coisa que as mulheres poderiam aprender também é sentar no sofá, não só na “hora da minha novela”, pra tomar uma cerveja ou o que seja e deixar a casa cair. Até que alguém se mexa.
Termino desejando a você força para superarmos todos estes desafios e ofereço “a mulher do fim do mundo”, com a deusa Elza Soares. Em tempos de tristeza e preocupação extrema, vá dançar um pouco!
Carla Gisele Batista é historiadora, pesquisadora, educadora popular. Mestra em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela UFBA. Militante feminista, integrou as coordenações do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Marcosur. Publicou em 2019 o livro: Ação Feminista em Defesa da Legalização do Aborto: Movimento e Instituição, pela Annablume Editora.