(Folha de S.Paulo) O recente documentário “Leite e Ferro“, da cineasta Cláudia Priscila, retrata de forma delicada a realidade de mulheres que são mães no sistema prisional, convidando-nos a entrar no cotidiano de quem vive um momento muito especial em situação limite de exclusão e violência. O envolvimento com drogas, o abandono afetivo e as preocupações com seus filhos são alguns dos temas desse importante filme.
A maternidade na prisão também ganhou destaque após reportagens desta Folha sobre denúncias feitas pela Pastoral Carcerária quanto ao uso de algemas nas mãos ou calcetas nos pés durante o parto.
Essa prática degradante apenas confirma que, em matéria de brutalidade, os feitos humanos podem superar em muito a imaginação. Uma forma de violência física e psicológica sem qualquer justificativa possível em termos de segurança.
Trata-se de tratamento cruel, desumano e degradante, que viola nossa Constituição Federal (art. 5º, incisos XLVII e XLIX), além de diversos tratados de direitos humanos, entre os quais a Convenção da ONU contra a Tortura, que a define como qualquer ato praticado por agente do Estado pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa para castigá-la, intimidá-la ou discriminá-la.
Manter uma mulher algemada durante o parto é um claro caso de tortura, e essa prática pode ensejar, além de punições aos responsáveis, a responsabilização internacional do Brasil. O assunto vem à tona logo após avanços jurídicos para garantir o pleno exercício dos direitos humanos pelas mulheres encarceradas, dada a sua condição especial de vulnerabilidade.
Nesse sentido é que, em 2010, foram adotadas pela ONU as Regras Mínimas de Tratamento para as Mulheres Presas – Regras de Bangkok, documento do qual o Brasil participou da elaboração e que veda expressamente o uso de qualquer meio coercitivo antes, durante ou logo após o parto.
Infelizmente, o uso de algemas ou calcetas durante o parto constitui apenas uma das violações aos direitos de maternidade nesse cenário. Além da separação repentina de suas crianças, muitas mulheres presas têm seus filhos retirados de suas famílias e adotados por outras de maneira não raramente ilegal, pois nem sequer são ouvidas pela Justiça, ignorando-se o direito de crianças de conviverem com sua família biológica.
Diante desse quadro, a maternidade, que poderia representar momento de transcendência, paradoxalmente aprofunda violações aos direitos das mulheres encarceradas.
As responsabilidades, até o momento, não foram devidamente apuradas pelas instituições responsáveis, especialmente pelo próprio governo, que em nenhum momento esclareceu o porquê desses acontecimentos lamentáveis. Com a palavra, o secretário de Administração Penitenciária.
Fernanda Penteado Balera é advogada voluntária da Pastoral Carcerária de São Paulo.
Sérgio Salomão Shecaira é professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi presidente do CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária).
Acesse em pdf: Maternidade na prisão, por Fernanda Penteado Balera e Sérgio Salomão Shecaira (Folha de S.Paulo – 03/01/2012)