Sexo sem consentimento no casamento: “Tudo depois do ‘não’ da mulher é estupro”

15 de maio, 2020

A coach Luisa Nunes se envolveu em uma polêmica ao afirmar que no casamento é o homem que decide a frequência do sexo. A influenciadora, que possui quase 44 mil seguidores no Instagram, dá dicas sobre o universo feminino.

(Yahoo, 15/05/2020 – acesse no site de origem)

Nos Stories, ela responde para uma seguidora: “É a coisa mais fácil do mundo para mulher fazer sexo, gente! (…) Vocês conseguem fazer almoço sem vontade, limpar a casa sem querer, trocar a fralda e amamentar no meio da noite, mas não pode abrir as pernas e deixar seu marido se satisfazer das necessidades dele?”. Confira o post na íntegra:

 

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Procurada pelo Yahoo!, Luisa não quis se manifestar sobre o caso. Mas sua assessoria indicou que “as explicações estão em um destaque denominado haters (‘odiadores’ – em tradução livre”, na rede social da influenciadora. Eis uma parte da justificativa:

Fazer dieta por exemplo não é contra a sua vontade é sem vontade. Você não tem vontade de fazer dieta, mas você faz para ficar magra. Malhar, você não quer malhar. Você faz sem vontade. Agora, contra a vontade, com dor, quando tá passando mal, quando acabou de ganhar um filho aí não é para fazer não. Se o cara for um idiota, um babaca, um filho da p* aí não é para fazer não. Mas aí você entra no meu perfil e começa a organizar a sua vida de forma que começa a se livrar desse cafajeste. Vocês não sabem que essas mulheres estão dependentes, emocionalmente e financeiramente desses homens e é por isso que elas não saem. É esse meu trabalho aqui, meus amores.

Neste vídeo, Luisa fala mais sobre o post polêmico:

 

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O texto levantou um debate nas redes sociais sobre violência contra a mulher.

 

Mulher: objeto e propriedade

Há quase 20 anos, as mulheres tinham como dever transar com os seus maridos. Uma esposa que se recusava a fazer sexo estava em “débito conjugal”, de acordo com o código penal brasileiro. Motivo suficiente para o homem pedir separação por justa causa. A lei durou até 2003 – sim, tudo isso. Mas a forma de enxergar a mulher como objeto e propriedade permanece na sociedade.

“Sexo não é obrigação conjugal”, afirma a  advogada Tatiana Naumann, especialista em Direito de Família, que atua principalmente com mulheres. “Tratá-lo dessa forma é reduzir a mulher à condição de objeto, contrariando o princípio da dignidade humana.” No post de Luisa não há propriamente uma apologia ao estupro, conclui a promotora de justiça Valéria Scarance, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mas ela ressalta que a influenciadora não considerou a mulher como indivíduo.

“Incentiva-se a mulher a se submeter a vontade do parceiro mesmo contra a sua vontade”, diz Valéria, que complementa. “Mulheres, solteiras ou casadas, são pessoas. Pessoas têm direitos e desejos, ou não desejos, que devem ser respeitados. É preciso repensar esses estereótipos que reforçam a ideia do homem como alguém superior e da mulher como alguém subserviente”. Para a advogada Tatiana, a declaração da coach reduz o sexo a uma mera tarefa doméstica. “Isso estimula a cultura do estupro, pois fere diretamente a liberdade sexual da mulher.”

É possível uma mulher ser estuprada pelo marido? 

A lei diz que estupro implica em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ato libidinoso”. A pena varia entre 6 e 30 anos de prisão, de acordo com os níveis de violência. A advogada Gabriela Souza, que atende exclusivamente ao público feminino, é categórica:

Tudo depois do ‘não’ da mulher é estupro. Se o homem força algum tipo de sexo que não é do desejo da mulher é estupro. Mesmo que seja cometido pelo marido

Mas, reconhecer que sofreu um estupro e denunciar o próprio parceiro é realidade de poucas mulheres. Entre vítimas maiores de 18 anos, os cônjuges são os estupradores em 8,20% dos casos no Brasil. E não são só os maridos que praticam violência sexual. Entre vítimas adolescentes de 14 a 17 anos, a maior incidência de estupros são praticados pelos namorados, cerca de 9,01%. Os dados são do Atlas da Violência de 2018. Os números são alarmantes. Mas não representam a real dimensão da violência. Apenas 10% a 15% dos casos são reportados, conclui a pesquisa.

Isso acontece porque a maioria das mulheres não reconhece o estupro em suas relações. Para elas, transar com o marido é uma obrigação. A psicóloga Fernanda de Souza Gramostin atende dezenas de mulheres, no projeto SOS Ação Mulher e Família, em Campinas. Ela conta que, na maior parte dos casos, é difícil para a mulher perceber que é vítima. “As mulheres acham que é errado não ter relação com esse homem, uma vez que escolheram se casar com ele”

Os homens usam o sexo como um direito individual, que pode ser exercido mesmo contra a vontade da parceira, esclarece a promotora Valéria Scarance. Em toda sua carreira, ela só recebeu a denúncia de dois casos de estupro marital. “Os agressores eram muito violentos e praticaram também outros crimes. As mulheres foram procurar ajuda por conta de outros crimes e, então, surgiu a notícia de estupro.”

As vítimas de violência podem procurar orientação nas redes de atendimento para mulheres. Para denúncias, elas devem ir à delegacia, de preferência à de mulheres, e contar sobre o crime, ou seja, registrar o boletim de ocorrência. Há também a possibilidade de pedir ajuda por telefone na Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180.

Um dos principais motivos para as mulheres não denunciarem os seus agressores é por questões financeiras. “Não tenho dinheiro para sustentar meus filhos”, é a frase que a psicóloga Fernanda de Souza mais escuta no projeto SOS Ação Mulher e Família, onde trabalha como voluntária há cinco anos. Por isso, a organização disponibiliza gratuitamente cursos de manicure para as mulheres entrarem no mercado de trabalho.

Quem decide se separar e não possui renda tem direito à pensão por um prazo determinado até que encontre um emprego, instrui a advogada Tatiana Naumann. Além da falta de dinheiro, as mulheres não denunciam por conta do julgamento. “Infelizmente, ainda se julga a postura da mulher. Esses julgamentos por parte da família e da sociedade podem causar ainda mais sofrimento”, ressalta a promotora Valéria Scarance, que conclui: “Costumo dizer que, quando se julga uma mulher, cala-se outra”.

Por Aline Takashima

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