(Correio Braziliense) Não há quem não saiba, comente ou lamente. É fato: um participante de reality show está sendo investigado por estupro de participante do programa. Apesar das aparentes negativas do suposto algoz e vítima, uma autoridade policial fluminense resolveu averiguar os fatos apresentados de madrugada por canal de TV a cabo no sistema pay-per-view.
A cena mostra os dois embaixo de um edredom, gemidos contidos são ouvidos e movimentos aparentando carícias sexuais podem ser percebidos. A vítima parece estar desacordada e afirmou, no dia seguinte, que não houve penetração, mas “mão naquilo e aquilo na mão”. Também o investigado teria negado qualquer tipo de constrangimento ou conduta forçada.
A vítima não representou para autorizar a apuração dos fatos. O estupro na sua figura básica (art. 213, CP), desde a edição da Lei 12.015/09, exige autorização da vítima para abertura de inquérito policial, autorização que se faz mediante representação para a investigação dos fatos. Ao não exigir tal formalidade, acreditamos que a autoridade policial vislumbrou a possibilidade de estupro de vulnerável, provavelmente por acreditar que a mulher, embriagada, não tinha possibilidade de oferecer resistência às investidas. Para apuração desse tipo de delito, o Código Penal dispensa a representação e pode ser iniciada de ofício pelos órgãos públicos.
No caso, a tarefa da autoridade policial é inglória, eis que, para resultar ação penal, o inquérito precisará demonstrar razoavelmente que o grau de embriaguez da vítima lhe retirou totalmente o poder de resistência. Sem perícia realizada em tempo razoável, será difícil demonstrar a incapacidade de resistência, principalmente diante dos depoimentos iniciais.
Porém, quando se pretende apurar um fato tido como criminoso, a investigação se realiza na integralidade, buscando identificar os eventuais responsáveis pelo delito. Mas… haveria outros responsáveis além do protagonista das fatídicas cenas? Ao analisar juridicamente os fatos, não podemos descartar, de plano, tal hipótese. Afinal, pelo que foi divulgado na imprensa, também o participante investigado estaria embriagado e poderia, quem sabe, faltar-lhe o pleno entendimento sobre seus atos (apesar de seu depoimento em sentido contrário).
Por seu lado, é mais do que sabido que, durante as várias edições do reality, são realizadas festas regadas a muita bebida alcoólica. Ao que parece, não há controle por parte da direção e todos podem se embebedar à vontade. E muitos deles se embriagam, caem no ridículo, choram, discutem, chegando, às vezes, às vias de fato como se viu em programas anteriores. Essas situações embaraçosas são, sem dúvida, um dos chamarizes do programa, pois, vez por outra, são utilizadas como chamadas do programa da noite seguinte.
É de ressaltar ainda que os participantes confinados participam dos “jogos” que os expõem a situações de estresse e existem menos camas na casa do que o adequado, estimulando a aproximação e o contato físico entre os participantes. Nessa linha, seriam apenas os embriagados do programa os responsáveis pelos atos tresloucados que praticam no interior da casa, ou poderia ser atribuída responsabilidade por omissão (ou mesmo direta) aos responsáveis pelo referido programa?
Instituto do direito penal chamado autoria mediata ocorre quando alguém se encontra numa posição de controle e se vale de outrem, incapaz de entendimento, para executar um delito. Por exemplo, uma pessoa que tenha influência sobre doente mental ou criança e determina a ela que ateie fogo na casa de inimigo. Não se está aqui insinuando que os responsáveis pelo programa desejassem que a participante fosse molestada (o que nem se sabe se aconteceu), mas, ao fornecer bebidas alcoólicas ilimitadamente e permitir que os participantes se embriaguem a ponto de perder os sentidos e também induzi-los ao contato físico, tais pessoas não estariam, ao menos, incrementando a possibilidade de perigo e assumindo o risco de que resultado proveniente de crime fosse produzido, atuando, enfim, com o chamado dolo eventual, tão falado nas tragédias de trânsito provocadas por motoristas bêbados. Como as autoridades policiais pretendem apurar os fatos e os responsáveis, caso ainda não tenham pensado nisso, seria razoável dar uma espiadinha nessa possibilidade.
Autor: Juiz da Vara Criminal e Tribunal do Júri de Brazlândia Fernando Barbagalo
Acesse o pdf: BBB, estupro e responsabilidade penal, por Fernando Barbagalo (Correio Braziliense – 30/01/2012)