Procuradores da República afirmam que protocolo de assistência do NUAVIDAS segue todos os parâmetros legais. Só nos primeiros 70 dias deste ano, serviço atendeu 48 mulheres adultas e 105 meninas vítimas de violência sexual
O Ministério Público Federal (MPF) recomendou ao reitor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e ao superintendente do Hospital de Clínicas (HC) da UFU que adotem todas as medidas necessárias para garantir a continuidade da execução da primeira etapa do protocolo “Atenção a mulheres ou adolescentes em situação de aborto previsto em lei por telessaúde/telemedicina: protocolo de assistência do NUAVIDAS HC/UFU”, tal como aprovado pela Comissão de Ética Médica do hospital.
É a segunda recomendação do MPF em Uberlândia (MG) tratando desse protocolo. A primeira, expedida em agosto de 2020, foi prontamente acatada pela instituição. Recentemente, porém, o Ministério da Saúde editou a Nota Informativa nº 1/2021 – SAPS/NUJUR/SAPS/MS, que colocou em risco a prestação do serviço.
“Para se ter ideia da essencialidade do protocolo, basta ver os números do atendimento. Segundo informações do NUAVIDAS, em 2020, houve um aumento de cerca de 100% no número de internações para aborto previsto em lei, com uma média mensal de 3 a 4 internações. No total, em 2020, foram atendidas 138 mulheres e 244 meninas de até 12 anos vítimas de violência sexual. Em 2021, em menos de 3 meses [até o último dia 12 de março], já tinham sido atendidas 48 mulheres adultas e 105 meninas”, afirmam os procuradores da República que assinam a recomendação.
Eles ressaltam que, neste cenário de violência sexual agravado pelas restrições de mobilidade impostas pela Covid-19, “o atendimento por telemedicina, tal como previsto no Protocolo do NUAVIDAS, é uma opção que as vítimas possuem de, se assim desejarem, especialmente em um momento de grande fragilidade física e emocional, continuar o tratamento em casa, junto da família, longe dos riscos de contaminação do ambiente hospitalar – ainda mais em um período de pandemia, que afastou as pessoas do atendimento médico – e dos olhares discriminatórios que as cercam”.
Como funciona – Na verdade, o protocolo de assistência do NUAVIDAS HC/UFU prevê atendimento por telessaúde/telemedicina apenas de forma parcial: a primeira fase do atendimento é realizada presencialmente, quando é feito o acolhimento da vítima por uma equipe multidisciplinar (médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, advogados), que realiza anamnese completa da paciente e solicita os exames necessários.
Em seguida, após a confirmação de que o caso pode ser encaminhado para procedimento domiciliar, são colhidas as assinaturas dos termos previstos na legislação, que são o Termo de Relato Circunstanciado, Termo de Responsabilidade, Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e Termo de Consentimento e Responsabilidade para Uso Domiciliar do Medicamento Misoprostol [que induzirá o aborto]. “Esse termo de consentimento e responsabilidade tem o objetivo de evitar o uso ou destinação irregular do medicamento: ao assiná-lo, a paciente compromete-se a utilizar o misoprostol com o único fim de interromper a própria gestação, da forma orientada pela equipe de saúde, e a administrá-lo conforme o regime de telemonitoramento, sob as penas da lei”, explica a recomendação.
Por fim, após assinatura dos documentos, o tratamento é prescrito e os remédios são entregues à paciente ou a seus responsáveis legais, quando menor. Somente a partir daí, tem início a fase remota do atendimento, quando ela passa a ser assistida pela equipe médica à distância, com o telemonitoramento do uso da medicação e de seu resultado.
É de se destacar também que, conforme consta do protocolo, a assistência por telemedicina está restrita às situações de “idade gestacional menor ou igual a 63 dias (9 semanas)”, pois apenas neste caso é recomendado o tratamento para aborto medicamentoso com a substância misoprostol.
Quanto à eficácia do medicamento, nota técnica emitida pelo próprio Ministério da Saúde em 2012, denominada “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes”, já relatava que “a eficácia do abortamento medicamentoso com misoprostol é de cerca de 90%, com expulsão completa da gravidez e sem necessidade de procedimentos complementares para o esvaziamento uterino, tanto no primeiro como no segundo trimestre”.
No que diz respeito a efeitos adversos, o NUAVIDAS informou ao MPF que o misoprostol apresenta apenas reações adversas de fácil manejo, que inclusive se resolvem espontaneamente de 24 a 48 horas após o uso da medicação, razão pela qual ele já é utilizado pelo serviço de Ginecologia e Obstetrícia do HCU/UFU para o tratamento do aborto incompleto, em que a mulher recebe a medicação no Pronto Socorro e segue em observação domiciliar.
Em “estudos realizados com mais de 50 mil mulheres, não foi identificada diferença entre os eventos adversos no grupo que realizou o tratamento integralmente em casa e naquele que recebeu os primeiros cuidados no serviço de saúde, concluindo-se que a assistência por telemedicina é segura, eficiente, eficaz e satisfatória, com baixo nível de eventos adversos e potencial para ampliar o acesso ao aborto ao oferecer assistência com mais conveniência e privacidade”, descreve a recomendação.
Recomendado pela OMS – O MPF lembra que o protocolo de atendimento por telemedicina proposto pelo NUAVIDAS está em consonância não só com a legislação brasileira, mas também com recomendações da Organização Mundial da Saúde, da Organização dos Estados Americanos e do Fundo de População das Nações Unidas no Brasil (UNFPA), as quais visam “assegurar, especialmente neste período de crise sanitária, que vítimas de violência sexual tenham acesso a um procedimento que lhes é legalmente garantido, de forma segura e reservada, sem submetê-las aos riscos adicionais da COVID-19, além de liberar leitos hospitalares”.
A interrupção da gestação via telemedicina também já é utilizada em vários outros países, entre eles o Reino Unido, Canadá, Austrália e Colômbia, e é recomendada pela Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), que, em recente estudo, concluiu pela segurança e eficácia do procedimento, na mesma linha de evidências científicas recentes sobre o uso da telessaúde no atendimento ao aborto na Grã-Bretanha, Escócia, Estados Unidos e Irlanda.
No Brasil, desde 2018, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) já recomendava o tratamento domiciliar para o aborto previsto em lei, método que foi recentemente incluído em seu Protocolo nº 69/2021: “Nos casos de gravidez de até nove semanas (63 dias), é possível realizar o tratamento medicamentoso com o regime apenas com misoprostol em ambiente domiciliar, sem a necessidade de internação, com telemonitoramento da equipe de saúde, observadas as regulamentações vigentes relativas à telemedicina;”
Nova portaria – Para o MPF, a nota recentemente expedida pelo Ministério da Saúde desautorizando o procedimento de telemedicina nos casos de aborto legal não só utiliza argumentos equivocados, como os de risco no uso domiciliar do Misoprostol, como ainda parece ignorar aspectos procedimentais, como o fato de que “a assistência remota se restringe ao monitoramento pela equipe médica durante o tratamento domiciliar e acompanhamento pós-aborto legal, de modo que o protocolo do NUAVIDAS é plenamente compatível com as ações de telemedicina, tal como definidas na Lei n. 13.989/20202 e nas Portarias do MS n. 467/20203 e n. 526/2020”.
O mais importante, porém, para os procuradores da República, é que a nota informativa do Ministério da Saúde fundamenta-se em supostas modificações trazidas pela Portaria GM/MS nº 2.282, de 28/08/2020, mas o que ocorre é essa “nova portaria não promoveu NENHUMA modificação substancial com impacto no Protocolo do NUAVIDAS, ou seja, não trouxe qualquer novidade para o procedimento de atendimento por telemedicina objeto da recomendação, sendo irrelevante para esse fim”.
Atendimento previsto em lei – O MPF afirma que o aparato estatal não pode impor ainda mais sofrimento às vítimas de violência sexual, impedindo-as de receberem um atendimento comprovadamente mais humanizado e seguro.
De acordo com a recomendação, “embora a interrupção da gravidez resultante de estupro seja permitida no Brasil desde a década de 1940, nos termos do art. 128 do Código Penal, as dificuldades na realização do aborto legal acabam levando as vítimas a buscarem meios clandestinos e inseguros para a interrupção da gravidez ou serem obrigadas a se deslocar por longas distâncias em busca de atendimento e ter de se submeter ao procedimento em idade gestacional mais avançada”.
A Lei 12.845 prevê que “os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial, integral e multidisciplinar, visando ao controle e ao tratamento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual, e encaminhamento, se for o caso, aos serviços de assistência social” (art. 1º), com “atendimento imediato e obrigatório”, a ser prestado “em todos os hospitais integrantes da rede do SUS” (art. 3º).
Portanto, “ao se pretender eliminar essa opção, restringindo o direito ao aborto legal, o Poder Público viola os direitos fundamentais à liberdade sexual e reprodutiva, à integridade psicológica, decorrência do direito à vida, contemplado no caput do art. 5º da CRFB 1988, e à saúde, garantido no art. 6º e 196 da CRFB 1988”, e, “em se tratando de vítimas menores, o Estado descumpre também seu dever de “assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, (…) à dignidade, ao respeito (…), além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art. 226 da CF 88).
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