Nova edição do Anuário demonstra redução de praticamente todas as notificações de crimes contra meninas e mulheres em 2020, mas números ainda impressionam
(Fonte Segura | 21/07/2021 | Por Samira Bueno, Marina Bohnenberger e Isabela Sobral*)
Os dados apresentados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública moldam um retrato das notificações oficiais de violência contra meninas e mulheres no ano de 2020, período marcado pela pandemia de covid-19. De modo geral, os resultados demonstram redução de praticamente todas as notificações de crimes em delegacias de polícia. Os registros de lesão corporal em decorrência de violência doméstica, por exemplo, caíram 7,4%, passando de taxa de 229,7 crimes por grupo de 100 mil mulheres para uma taxa de 212,7 por 100 mil. Mesmo diante desta redução os números ainda impressionam por sua magnitude: 230.160 mulheres denunciaram um caso de violência doméstica em 26 UF, sendo o Ceará o único estado que não informou. Isto significa dizer que, ao menos 630 mulheres procuraram uma autoridade policial diariamente para denunciar um episódio de violência doméstica.
Seguindo a tendência verificada nos registros de violência doméstica, caíram também os registros de ameaça (-11,8%), e de estupro e estupro de vulnerável (-14,1%). Quando analisamos os registros por mês de ocorrência de casos de estupros e estupros de vulnerável no ano passado percebemos uma queda brusca em abril de 2020, o primeiro mês de isolamento social de prevenção à pandemia de Covid-19, que volta a crescer fortemente em maio. Embora as medidas tenham começado na segunda metade de março na maioria das Unidades da Federação, é de se esperar que qualquer efeito desse isolamento em nível nacional não pode ser aferido imediatamente.
Neste contexto, ainda é cedo para avaliar se estamos diante da redução dos níveis de violência doméstica e sexual ou se a queda seria apenas dos registros em um período em que a pandemia começava a se espalhar, as medidas de isolamento social foram mais respeitadas pela população e muitos serviços públicos estavam ainda se adequando para garantir o atendimento não-presencial.
Apesar da redução verificada nos registros policiais, o número de Medidas Protetivas de Urgência concedidas cresceu, passando de 281.941 em 2019 para 294.440 em 2020, crescimento de 4,4% no total de MPU concedidas pelos Tribunais de Justiça.
Os dados de chamados de violência doméstica às Polícias Militares no 190 também indicam crescimento, com 16,3% mais chamadas no último ano. Foram ao menos 694.131 ligações relativas à violência doméstica, o que significa que a cada minuto de 2020, 1,3 chamados foram de vítimas ou de terceiros pedindo ajuda em função de um episódio de violência doméstica.
Diante das diferenças apontadas pelos registros das Polícias Civis, Militares e Tribunais de Justiça, se faz necessário o monitoramento destes indicadores e a garantia de acolhimento e proteção às mulheres em situação de violência doméstica.
Violência letal contra meninas e mulheres
Em 2020 o país teve 3.913 homicídios de mulheres, dos quais 1.350 foram registrados como feminicídios, média de 34,5% do total de assassinatos. A taxa de homicídios de mulheres caiu 2,1%, passando de 3,7 mulheres mortas por grupo de 100 mil mulheres em 2019 para 3,6 mortes por 100 mil em 2020. Os feminicídios, por sua vez, apresentaram variação de 0,7% na taxa, que se manteve estável em 1,2 mortes por grupo de 100 mil pessoas. Em números absolutos, 1.350 mulheres foram assassinadas por sua condição de gênero, ou seja, morreram por ser mulheres. No total, foram 3.913 mulheres assassinadas no país no ano passado, inclusos os números do feminicídio. Esta relação indica que 34,5% do total de assassinatos de mulheres foi considerado como feminicídio pelas Polícias Civis estaduais. O gráfico abaixo apresenta a taxa de cada crime por UF.
Verifica-se grande variação entre os estados. As maiores taxas de feminicídio estão em Mato Grosso com taxa de 3,6, Roraima e Mato Grosso do Sul, ambos com taxa de 3 por 100 mil mulheres, e Acre com taxa de 2,7. As menores taxas estão no Distrito Federal, que ficou com 0,4 6 mortes por 100 mil, Rio Grande do Norte com 0,7 por 100 mil, São Paulo e Amazonas com taxa de 0,8 por 100 mil mulheres.
Mas analisar o contexto de violência letal contra meninas e mulheres no país exige o olhar para todos os homicídios femininos, dado que a legislação sobre feminicídios no país data de 2015, e os dados aqui apresentados dependem em grande medida dos avanços que cada estado e suas respectivas polícias fizeram na investigação e na tipificação da violência baseada em gênero.
Reforça-se aqui que nos homicídios femininos estão incluídos os feminicídios, mas é justamente esse olhar para o todo que nos permite compreender quais estados de fato tem as maiores taxas de feminicídio, e quais potencialmente possuem elevadas taxas, mas não classificam estes crimes de forma adequada. No Ceará, por exemplo, apenas 8,2% de todos os assassinatos de mulheres foram classificados como feminicídios, percentual muito inferior à média nacional de 34,5%. Isso indica que é provável que muitos casos de feminicídios tenham sido classificados erroneamente apenas como homicídios.
Também com taxas elevadas de homicídios femininos estão Mato Grosso do Sul, com taxa de 7,8, Acre, com taxa de 6,9 e Rondônia, com taxa de 6,4.
Essa hipótese ganha relevância na análise do cenário nacional quando verificamos a relação entre autor e vítima nos boletins de ocorrência. Ainda que este dado seja parcial, visto que em muitos casos a polícia não sabe indicar a autoria no momento do registro, sabemos que a maioria dos feminicídios no Brasil são feminicídios íntimos, ou seja, perpetrados pelo parceiro íntimo da vítima, companheiro ou ex-companheiro. Estes são os casos mais simples de classificar, dado que a maioria dos episódios que temos hoje classificados como feminicídios tem relação com violência doméstica e o suspeito é o parceiro. A própria definição de feminicídio, dada pela lei 13.104/2015 afirma que, considera-se que o crime foi praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino em duas hipóteses: 1) quando o crime envolve violência doméstica e familiar; 2) quando envolve menosprezo ou discriminação à condição de mulheres. Ainda que ambas as hipóteses possam estar presentes, o vínculo entre autor e vítima tende a ser algo mais objetivo na avaliação do policial e, consequentemente, mais simples de classificar.
Apesar da definição legal, e dos limites impostos pela base de dados, o fato é que 14,7% dos homicídios femininos tiveram como autor o parceiro ou ex-parceiro íntimo da vítima, o que deveria torná-los automaticamente um feminicídio. Isto significa dizer que cerca de 377 homicídios de mulheres praticados no ano passado são, na realidade, crimes de feminicídio.
Já os dados de feminicídio indicam que 81,5% das vítimas foram mortas pelo parceiro ou ex-parceiro íntimo, mas se considerarmos também demais vínculos de parentesco temos que 9 em cada 10 mulheres vítimas de feminicídio morreram pela ação do companheiro ou de algum parente.
Perfil das vítimas
Entre as vítimas de feminicídio verifica-se distribuição mais igualitária entre as faixas de 18 a 24 anos (16,7%), de 25 a 29 anos (16,5%), 30 a 34 anos (15,2%), 35 a 39 anos (15,0%), com poucas vítimas entre crianças e adolescentes.
Já entre os demais homicídios de mulheres verifica-se maior concentração entre meninas e mulheres jovens, com 8,8% das vítimas com 12 a 17 anos no momento da morte, 22,1% entre 18 e 24 anos e 15,3% de 25 a 29 anos, totalizando metade das vítimas como jovens (49,8%).
O perfil racial também apresenta pequena diferença, embora em ambos os casos se verifique a sobrerrepresentação de mulheres negras entre as vítimas. Entre as vítimas de feminicídio no último ano 61,8% eram negras, 36,5% brancas, 0,9% amarelas e 0,9% indígenas. Entre as vítimas dos demais homicídios femininos 71% eram negras, 28% eram brancas, 0,2% indígenas e 0,8% amarelas.
O local do crime é outra variável útil para compreendermos o contexto da morte violenta. Nos casos de feminicídio mais da metade das vítimas morreram dentro de casa, ao passo que dentre os demais homicídios femininos 1/3 ocorreram em via pública.
Em relação ao período do dia em que os assassinatos aconteceram não se verifica grandes diferenças, com noite e madrugada concentrando pelo menos metade de todos os crimes, com maior incidência no período compreendido entre 18h e 24h.
A diferença mais significativa na comparação entre os feminicídios e os demais assassinatos de mulheres se dá em relação ao instrumento empregado. Enquanto armas de fogo respondem por 64% de todos os demais assassinatos de mulheres, semelhante à média nacional, a maioria dos crimes de feminicídio ocorrem com a utilização de armas brancas como facas, tesouras, canivetes, pedaços de madeira e outros instrumentos (55,1%) que podem ser utilizados pelo agressor.
Este fato não é novo e reforça um elemento central para compreensão do feminicídio, que ocorre principalmente em decorrência de violência doméstica, sendo o resultado final e extremo de um continuum de violência sofrida pelas mulheres (Kelly, 1988), e pouco associado às dinâmicas mais comuns da criminalidade urbana. Por ser um crime de ódio e perpetrado por alguém próximo, muitas vezes em casa e após uma série de outras violências, o autor utiliza-se do que encontra a frente para o feminicídio.
Estudo conduzido por Campbell et al. (2003) em onze cidades, com 220 vítimas de feminicídio íntimo, nos Estados Unidos, verificou que 70% tinham sofrido violência física do parceiro íntimo antes do assassinato; e que, entre os fatores de risco, estavam o acesso a armas de fogo por parte do agressor, a dependência química e o fato de residirem no mesmo endereço (IPEA, FBSP, 2020). Não à toa, o FRIDA – Formulário Nacional de Avaliação de Risco do Conselho Nacional de Justiça inclui questão específica sobre a facilidade de acesso a armas de fogo por parte do autor da violência, e a lei 13.880/2019 prevê a apreensão de arma de fogo quando o autor de violência doméstica tem posse. Estudo publicado por Vigdor e Mercy nos Estados Unidos indicou que a apreensão da arma de fogo de acusados de violência doméstica implicou na redução de 7% na taxa de homicídios femininos por parte de seus parceiros íntimos (Vigdor, Mercy, 2006).
Diante destas considerações e dos dados apresentados na seção sobre armas de fogo deste anuário, que indica crescimento de 100,6% no total de registro de posses de arma no SINARM desde 2017 – passando de 637.972 para 1.279.491 em 2020 -, vivemos o sério risco da antecipação de desfechos ainda mais violentos como os feminicídios para as mulheres expostas à violência doméstica, aumentando muito o risco para as vítimas e seus familiares.
REFERÊNCIAS
Atlas da violência 2020. Brasília; Rio de Janeiro; São Paulo: IPEA; FBSP, 2020.
CAMPBELL, J. C. et al. Risk factors for femicide in abusive relationships: results from a multisite case control study. Am. J. Public Health, v. 93, n. 7, p. 1089-1097, July 2003.
KELLY, L. Surviving sexual violence. Cambridge: Polity Press, 1988.
VIGDOR, E. R.; MERCY, J. A. Do Laws Restricting Access to Firearms by Domestic Violence Offenders Prevent Intimate Partner Homicide?. Evaluation Review, Vol 30, Issue 3, 2006
Samira Bueno
Diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Texto originalmente publicado na 15ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A íntegra pode ser acessada neste link.