Sou contra a criminalização do aborto, diz única mulher a presidir Superior Tribunal Militar

07 de março, 2016

(UOL Notícias, 07/03/2016) Foi um período de apenas nove meses que garantiu notoriedade a Elizabeth Rocha. Durante este curto prazo, ela foi a primeira — e única — mulher a presidir o sisudo STM (Superior Tribunal Militar), um dos tribunais que compõem a cúpula do Poder Judiciário no país. “Foi significativo serem só nove meses, que é o tempo de gestação de uma vida”, diz Elizabeth sobre o período.

A passagem pela liderança da corte que julga crimes de integrantes das Forças Armadas foi apenas o passo mais impactante da jornada desta magistrada de 56 anos nascida em Belo Horizonte.

Advogada formada pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Minas, ela atuou durante anos como defensora pública. Em 2007, foi nomeada pelo então presidente Lula como a primeira ministra da história do STM. Não por acaso, a nomeação saiu em um 7 de março, véspera do Dia Internacional da Mulher. Mesmo em um ambiente notoriamente masculino, a ministra não se intimida em defender o poder feminino. “Nós mulheres temos direito a tudo: temos direito a ser mães, a ser boas profissionais, a termos um casamento feliz. A luta das mulheres é uma luta árdua, uma luta longa, mas tem que continuar sendo travada”, declara.

Sete anos depois, em junho de 2014, foi empossada presidente do tribunal, cargo que ocupou até março de 2015. Formado atualmente por 13 integrantes nomeados pelo presidente da República (oito militares e cinco civis), o STM é o tribunal mais antigo do país, com mais de 200 anos de história.

Leia abaixo trechos da entrevista da magistrada:

UOL – A senhora foi nomeada ministra na véspera de um 8 de Março, Dia Internacional da Mulher. Nove anos depois, como avalia a evolução dos direitos da mulher em geral e no Judiciário, em particular?

Elizabeth Rocha – Houve um avanço porque a história não caminha para trás. Mas os avanços ainda são muito pequenos, e ainda há muito o que se fazer para buscar a efetiva igualdade entre homens e mulheres dentro do Poder Judiciário.
Na segunda instância, nos tribunais de Justiça e nos tribunais superiores, a presença feminina ainda é muito pequena considerando o volume populacional de mulheres operadoras jurídicas e magistradas que nós temos.

O que ainda está atravancando esse avanço maior?
Ainda existe um preconceito e uma discriminação de gênero que, com o tempo, paulatinamente, vem sendo quebrantados.
E a maior prova disso foi a rejeição, na Câmara dos Deputados, da cota de 30% de cadeiras para as mulheres.

A senhora foi a primeira ministra mulher a integrar o STM. Como foi a receptividade dos demais ministros?
Nesse ponto eu não posso me queixar. Eu realmente fui muito bem tratada e fui muito bem recebida pelos meus colegas tanto civis quanto militares.
Isso até pode parecer meio paradoxal, afinal de contas a caserna ainda é um ambiente estritamente masculino.
E veja só: essa é a corte mais antiga do Brasil, com 207 anos de existência. E ainda assim eu fui a primeira mulher depois de dois séculos. A primeira mulher no Superior Tribunal Militar. Efetivamente, na primeira instância [da Justiça militar] aí existiam outras [mulheres]. Quando o acesso é meritório, quando o acesso é por concurso, as mulheres ingressam. Quando a escolha é política, fica sempre mais complicado, o funil é mais estreito.

A senhora vê alguma diferença entre os ministros civis e militares do STM?
A diferença de pensamento é muito grande. Os militares são criados sob a égide da hierarquia e disciplina. E eu entendo exatamente o porquê. Homens armados têm que ser controlados. Não é possível se discutir, dentro de uma hierarquia castrense [denominação que se dá ao vínculo de subordinação ao qual estão submetidos o superior hierárquico e o subordinado em uma organização pública], se a ordem do general é democrática ou não, se a ordem do general é correta ou não…Ela tem que ser obedecida. E depois, se houver algum abuso, houver algum erro, aí existe o direito penal militar para poder punir.
Eu costumo dizer que as Forças Armadas são instituições antidemocráticas para preservar o Estado Democrático de Direito.

Com os novos protestos deste ano, a Polícia Militar foi acusada de abusos e voltou a discussão sobre a desmilitarização da PM. Qual a posição da senhora sobre este assunto?
Eu sou radicalmente contra, eu acho uma temeridade. Homens armados têm que estar submetidos a uma cadeia de comando. Há regras e penas muito mais rigorosas do que aquelas que se aplicariam em tese ao civil.
Mas a sociedade fica com uma impressão de que há mais impunidade no meio militar.
Pois aí é que a sociedade se engana. A sociedade sempre pensa que a Justiça Militar é corporativa, quando na verdade ela não é. Se se fizer uma estatística, o número de condenações é imenso em comparação à Justiça civil.
Eu posso dar um exemplo gritante para todos os brasileiros. Antigamente, os crimes dolosos contra a vida eram julgados nas justiças militares e o nível de condenação era imenso. Quando houver o massacre do Carandiru [episódio em 111 detentos do presídio foram mortos por policiais militares], em São Paulo, a lei foi alterada e passou a competência para o tribunal do júri. Pois bem: as absolvições são muito maiores. E o que é mais gritante: os réus que perpetraram esses crimes todos só foram julgados 22 anos depois.
Então eu pergunto: que justiça é essa onde vários réus morreram, vários crimes prescreverem? Se fosse na Justiça Militar, que é célere, é especializada, é ágil, eles teriam sido condenados.

Ainda sobre a sensação de impunidade, como a senhora vê essa decisão do STF de permitir a prisão de réus após decisão em segunda instância?
Eu respeito profundamente as posições do Supremo Tribunal Federal, mas eu votaria diferente. Eu garantiria o esgotamento de todos os recursos processuais para que então se pudesse prender.
Se posteriormente o STJ ou o Supremo numa outra reanálise verifiquem que houve alguma lesão na apreciação de provas, e aí, como é que se faz com a liberdade daquele homem que foi preso?

E o Brasil é um país que comete sérios erros judiciais. Existe um sistema judicial, e eu digo isso com muita franqueza, que é falho. Não é fácil a função do julgador, todos nós somos humanos, podemos cometer erros. E a vida daquela pessoa que foi vítima de uma injustiça judicial?

Com o avanço dos casos de microcefalia, o direito ao aborto pode ser novamente discutido pelo STF. Qual sua opinião sobre o direito de mulheres grávidas de fetos com microcefalia a abortar?
Sou contra a criminalização do aborto. Não que eu ache que o aborto seja uma medida de contenção de nascimentos. Agora diante de um feto anencefálico, diante de um estupro, não se pode impor à mulher uma gestação, e, pior, torná-la uma criminosa caso ela queira interromper a gravidez. O Estado não tem o direito de intervir.

Como a senhora vê a perda de status de ministério da Secretaria das Mulheres, que foi fundida a outra pasta?
Eu lamentei muito. Acho que o fato de ter uma secretaria já era um marco simbólico da questão do empoderamento. Eu sei que os números pesam, a nossa balança orçamentária não anda boa, mas foi uma lástima ter escolhido essa secretaria específica para ser extinta, porque ela tinha um simbolismo que, com sua extinção, foi desconstruído.

Durante sua carreira, mesmo antes de ser magistrada, já sentiu algum tipo de preconceito por ser mulher?
Não. Eu fui concursada, passei no meu concurso público em primeiro lugar. Fui mestre com distinção, fui doutora com louvor. Mas sempre me esforcei muito para me destacar.
A luta das mulheres é uma luta árdua, uma luta longa, mas tem que continuar sendo travada.

Eu sei que realmente existe um preconceito de gênero muito forte. Não nego. E, para poder compensar essa desigualdade, eu sempre dediquei a minha vida ao estudo. Eu consegui vencer a barreira do preconceito estudando. Mas sacrifiquei a minha pessoal, o que hoje eu não sei se eu faria. Eu repensaria se valeu a pena ter feito certos sacrifícios, ter aberto mão de certas escolhas para poder ser uma magistrada e estar aqui hoje.

A senhora se refere à maternidade?
A maternidade foi uma delas. Eu tive que abrir mão da maternidade porque nós mulheres temos prazo de validade. E eu adiei o meu projeto de maternidade em nome da minha carreira profissional, e eu digo isso abertamente, ficou tarde demais. E eu lamentei muito essa perda. Porque eu acho que nós mulheres temos direito a tudo: temos direito a ser mães, a ser boas profissionais, a termos um casamento feliz. E infelizmente eu tive que sacrificar. Talvez o peso da escolha tenha se refletido para mim nesse ponto, que é bastante doloroso. Porque não foi uma escolha que eu fiz.

A senhora foi a primeira e única mulher a presidir o STM. Qual foi o maior desafio na Presidência?
Foram só nove meses, mas foi significativo serem só nove meses, que é o tempo de gestação de uma vida.
Acho que meu principal desafio foi mostrar para a sociedade brasileira o que é o Superior Tribunal Militar. Mostrar que sempre fomos um tribunal democrático, apesar do que se fala. Que durante o regime militar essa justiça sempre atuou com isenção e imparcialidade. Que tem decisões memoráveis a favor da liberdade, da democracia.
E estou numa luta para digitalizar os processos históricos. Nós temos documentos de 1808. Se o papel se acaba, a memória vai embora.
Então talvez meu maior trabalho tenha sido este: mostrar a Justiça Militar da União primeiro para o Brasil, que a desconhece profundamente, e depois quem sabe até para o mundo?

Ainda no âmbito da história do Brasil, qual sua opinião sobre a Lei da Anistia?
O grande debate jurídico que vai ser instaurado é o que deve prevalecer. Se é a decisão do Supremo tribunal, que julgou constitucional a lei, e a posterior decisão da Corte de Direitos Humanos de San José, da Costa Rica. Como é que fica essa questão? Eu acho que nesse caso o Supremo saberá decidir muito bem a respeito do dilema que foi imposto.

Marina Motomura
Do UOL, em Brasília

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