Nos dias 3 e 6 de agosto, Supremo Tribunal Federal vai ouvir representantes da sociedade civil sobre a descriminalização do aborto, em debate que move o país; entenda os caminhos da ADPF 442 e o que está em jogo
(Gênero e Número, 01/08/2018 – acesse no site de origem)
Na próxima sexta-feira, 3 de agosto, e na segunda-feira seguinte, dia 6, o plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) será palco de mais de 20 horas de debate sobre aborto no Brasil, com transmissão ao vivo pela TV Justiça e pela internet, no canal do STF no Youtube. Argumentos e interpretações jurídicas, científicas e religiosas, além de muitos dados sobre a saúde das mulheres, serão oferecidos pelos 52 nomes selecionados pela ministra Rosa Weber para se manifestar nos dois dias de audiência pública sobre o tema.
Mas de que se trata, afinal, essa audiência? Quem são essas 52 pessoas e o que exatamente elas estarão debatendo? O STF pode legalizar o aborto na próxima semana? A Gênero e Número fez essas e outras perguntas para pessoas que estarão na audiência e traz algumas respostas que ajudam a entender o que está em jogo nesse debate.
1. Por que o STF está debatendo o aborto?
Em 8 de março de 2017, o PSOL e o Anis – Instituto de Bioética apresentaram uma ação no STF pedindo a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442 argumenta que os artigos 124 e 126 do Código Penal, elaborados em 1940, estão em conflito com a Constituição Brasileira, que entrou em vigor em 1988. Segundo a ação, os direitos das mulheres à cidadania e à dignidade, à vida, à igualdade, à liberdade, à saúde e ao planejamento familiar, de não ser discriminada e de não sofrer tortura ou tratamento desumano, degradante ou cruel, estabelecidos na Constituição, têm sido violados pela criminalização da interrupção voluntária da gestação em seu primeiro trimestre.
A relatoria da ação, decidida por sorteio, ficou a cargo da ministra do STF Rosa Weber. Isso significa que ela é a pessoa responsável pelo processo e vai conduzi-lo até o julgamento.
Em março passado, Weber convocou uma audiência pública para que representantes da sociedade civil apresentassem dali a alguns meses ao Supremo suas posições e argumentos sobre o tema, auxiliando os ministros no julgamento da ação. “Tem sido uma tradição do Supremo fazer audiência pública em casos mais polêmicos”, disse Luciana Boiteux, professora de Direito na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e advogada do PSOL responsável pela ADPF 442, à Gênero e Número. “Não é uma obrigação, depende da avaliação do relator ou da relatora. A ideia é trazer vozes que não vão estar no julgamento.”
2. Quem vai participar da audiência?
Ao convocar a audiência, a ministra Rosa Weber abriu inscrições para que representantes da sociedade civil se candidatassem a participar do debate no STF. Houve 187 pedidos de inscrição e 52 foram selecionados por Weber com base em critérios de representatividade técnica, atuação ou expertise no tema e garantia da pluralidade e paridade da composição da audiência.
Entre essas vozes estão:
- representantes do Ministério da Saúde e da Fiocruz;
- de entidades profissionais como a Academia Nacional de Medicina, a Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) e o Conselho Federal de Psicologia;
- de entidades jurídicas como o Instituto Brasileiro de Direito Civil e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e de órgãos como a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e a Defensoria Pública da União;
- de organizações pelos direitos humanos e das mulheres como a CONECTAS Direitos Humanos, o Anis – Instituto de Bioética e a Católicas pelo Direito de Decidir;
- de organizações internacionais como IWHC (International Women’s Health Coalition), Center for Reproductive Rights, Human Rights Watch e Consórcio Latino-Americano contra o Aborto Inseguro;
- de grupos antiaborto como o Centro de Reestruturação para a Vida e o Movimento Nacional da Cidadania pela Vida – Brasil sem aborto;
- de associações religiosas como a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), a Convenção Geral das Assembleias de Deus, a Sociedade Budista do Brasil, a Federação das Associações Muçulmanas do Brasil e a Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro.
A lista completa de quem participa e da ordem das apresentações pode ser conferida neste link. Cada participante (expositor) terá 20 minutos para fazer sua fala sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, tema da ADPF 442. Nos dois dias da audiência, a programação prevê que os trabalhos comecem às 8h20 e se encerrem às 19h30. A Gênero e Número fará uma cobertura ao vivo da audiência pelo Twitter; siga nosso perfil para nos acompanhar.
No fim da manhã e da tarde, há meia hora prevista como “espaço deliberativo”, em que os ministros do STF presentes podem fazer comentários e perguntas aos expositores. A ministra Weber convidou os outros 10 ministros do STF, mas a presença deles na audiência não é obrigatória.
CONTRA
“A sistemática atual deve ser mantida, ou seja, continuar admitindo o aborto apenas em caso de risco à vida da gestante, quando a gravidez decorre de estupro e diante do diagnóstico de anencefalia. Nosso ordenamento jurídico me parece bastante ponderado, pois defende a vida, mas compreende situações delicadas, afastando a punição.
Todos os seres humanos passam pela fase embrionária e pela fase de feto, desse modo, ainda que haja polêmica em torno de quando se inicia a vida, não há dúvidas de que para viver o embrião e o feto precisam ser protegidos.”
— Janaína Paschoal, jurista, falará como autônoma na audiência no STF
3. O que acontece depois da audiência pública?
Segundo Boiteux, a ação, no momento, aguarda o parecer do Ministério Público Federal, representado pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Na quarta-feira da semana passada (25/07), Dodge informou o STF que seu parecer será elaborado após a audiência desta semana. “Os elementos colhidos nesta audiência pública serão úteis para a manifestação da PGR, que será feita após a conclusão desta importante fase da instrução processual”, escreveu a procuradora-geral da República.
Assim que tiver o parecer da PGR, a ministra Rosa Weber já pode elaborar seu voto sobre a ação, pois já tem os pareceres da Câmara dos Deputados, do Senado e da AGU (Advocacia Geral da União), que representa o governo federal – todos contrários que a descriminalização do aborto seja julgada pelo STF.
Uma vez que o voto de Weber esteja pronto, ela pode convocar o julgamento para que a ADPF seja julgada e votada pelos 11 ministros do Supremo. Isso pode acontecer em poucos meses ou em alguns anos. “O histórico de julgamento de ADPF é demorado, em média de cinco a oito anos desde sua interposição”, disse Boiteux, que aposta em um desfecho mais rápido desta vez. “A realização de uma audiência pública pode instar a relatora a não demorar muito tempo para colocar a ação em julgamento. Um caso como este causa muita polêmica. Então ela pode tanto colocar em julgamento o mais rápido possível, para enfrentar a polêmica, ou demorar mais, para ver se a polêmica reduz. Na minha avaliação, este é um caso polêmico mesmo, não vai reduzir, então minha impressão é de que será julgado no ano que vem.”
A FAVOR
“A criminalização do aborto não reduz a sua frequência e nem protege a vida do feto. Pelo contrário, traz agravos à saúde da mulher e à sua vida e penaliza especialmente as negras e as mais pobres. Trata-se de um grave problema de saúde pública. A lei punitiva de 1940 é ineficaz: não previne abortos inseguros nem suas consequências.”
— Thomaz Gollop, ginecologista, representará a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC)
4. O STF pode descriminalizar o aborto?
O STF já descriminalizou o aborto no Brasil. Assim foi em 2012, quando a maioria dos ministros julgou procedente a ADPF 54, garantindo que gestantes de fetos anencéfalos tenham o direito de interromper a gravidez. Esta ação foi julgada oito anos após ter sido protocolada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), assessorada pelo Anis – Instituto de Bioética, que também assessora o PSOL na ADPF 442.
No entanto, é levantado com frequência o argumento de que, ao debater a legislação sobre aborto, o STF estaria tomando para si um papel que cabe ao Congresso Nacional. Foi essa, inclusive, a posição apresentada por Câmara, Senado e AGU em seus pareceres sobre a ADPF 442. Foi também o que disse à Gênero e Número a advogada Ângela Vidal Gandra Martins Silva, que representará a União dos Juristas Católicos de São Paulo na audiência pública no STF.
Para Martins Silva, “Direito não é política”. “Nossa Constituição Federal é clara sobre as competências, separação e independência entre os Poderes, que garantem a democracia e combatem a imposição tirânica pseudo camuflada, e que de forma oportunista impõe uma decisão sem o verdadeiro pluralismo explicitado constitucionalmente”, afirmou.
Boiteux argumenta que o papel do STF é garantir a Constituição. “Se o Parlamento aprova uma lei que viola a Constituição, é competência constitucional do Supremo declarar a inconstitucionalidade dessa lei”, explica. “Isso não é legislar, é exercer controle de constitucionalidade, algo essencial em uma democracia. O fato de ter um Parlamento que mantém a criminalização do aborto não significa que a gente não possa recorrer ao Supremo para que ele avalie a constitucionalidade dessa lei.”
Segundo ela, trata-se do que é conhecido na teoria constitucional como atuação contramajoritária do Supremo, que seria a competência do STF para defender os direitos das minorias sociais. Essa compreensão é internacional, disse Boiteux, sinalizando para os vários países que tiveram decisões favoráveis ao direito ao aborto em suas cortes supremas, como Estados Unidos, Alemanha e Colômbia.
CONTRA
“Falarei da inexistência de descumprimento de preceito fundamental pela coerência sistêmica de nossos ordenamentos, também consolidados no tempo. Sendo que, se se deseja uma modificação, não cabe ao STF determiná-la. Direito não é política.
Além do que o aborto foi amplamente debatido e rejeitado pelos constituintes, não existindo, como afirmou a AGU, um suposto direito constitucional ao aborto. Por outro lado, não há omissões legislativas pois há projetos nas câmaras.”
— Angela Vidal Gandra Martins Silva, advogada, representará a União dos Juristas Católicos de São Paulo
5. O que acontece se o STF aprovar a ADPF 442?
Há mais de um cenário para o caso de a maioria dos ministros do STF concordar com os argumentos apresentados pela ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. “Vai depender do posicionamento ou da ousadia do Supremo”, disse Boiteux.
Uma possibilidade é que a decisão final do STF – no julgamento que ainda está para ser marcado – somente declare a inconstitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal nas 12 primeiras semanas de gravidez. Assim, a interrupção voluntária da gestação nesse período deixaria de ser crime: nenhuma mulher mais poderia ser presa por abortar e nenhuma pessoa poderia ser presa por auxiliar alguém a realizar um aborto. Essa é a hipótese mais conservadora para um resultado favorável, segundo a advogada.
Em um cenário de mais ousadia da corte, o STF pode ir além e determinar ao Ministério da Saúde que adapte as normas do aborto legal para incluir a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana – o que significaria, na prática, a legalização do aborto no Brasil.
Boiteaux explica que uma ação que pedisse diretamente a legalização do aborto no STF seria equivocada, já que o papel da corte é determinar a constitucionalidade da lei. “Descriminalizar é o passo maior que se pode dar no sentido de tornar o aborto legal”, afirma a advogada. “Queremos que se concretize o direito ao aborto seguro, mas de alguma maneira, se deixa de ser crime, pode ser regulamentado por qualquer órgão. Bastaria uma normativa do Ministério da Saúde como a que existe hoje sobre o aborto legal em caso de estupro, por exemplo.”
A FAVOR
“Há argumentos bíblico-teológico-pastorais que não colocam em oposição a descriminalização do aborto e a tradição religiosa. Esta é uma tese importante, considerando que os principais argumentos levantados contra a descriminalização do aborto são de caráter religioso. Penso ser de extrema importância que a sociedade brasileira saiba que o discurso religioso acerca da interrupção da gravidez não é homogêneo, ou seja, há compreensões diversificadas acerca deste assunto.”
— Lusmarina Campos Garcia, pastora luterana, representará o Instituto de Estudos da Religião (ISER)
6. Quais são os dados sobre aborto no Brasil hoje?
A criminalização da interrupção voluntária da gravidez dificulta a coleta de dados precisos sobre quantos abortos são realizados no Brasil, quem são as mulheres que abortam e quem são as que morrem por abortos inseguros. Especialistas usam números do SUS (Sistema Único de Saúde) referentes a procedimentos pós-aborto e mortalidade por aborto para estimar quantos abortos clandestinos são realizados no país a cada ano.
Entre 2008 e 2017, o SUS registrou 2.260 mortes por aborto no país. O número real de mortes em decorrência de aborto, porém, pode ser 30% maior, segundo um estudo inédito que será publicado no Caderno de Saúde Pública da Fiocruz no primeiro semestre de 2019. Isso porque a causa de morte nem sempre é registrada como aborto, mas sim como a complicação causada pelo procedimento inseguro, como sepse (infecção generalizada) ou peritonite (inflamação por bactéria ou fungo no tecido do abdômen).
Se em 2008 o SUS registrou 801 mortes por aborto, em 2017 esse número caiu para 65. Especialistas acreditam que a popularização do misoprostol, medicamento abortivo cuja venda é ilegal no Brasil, diminuiu a letalidade do aborto clandestino no país.
Nos últimos dois anos, as negras foram 49,6% das mulheres mortas por aborto segundo os registros do SUS levantados pela Gênero e Número. As brancas foram 19,6% e não há informação sobre a raça das outras 30,8%.
Das mortes por aborto registradas entre 2008 e 2017, apenas 10 foram em decorrência de aborto por razões médicas ou legais, ou seja, casos em que o aborto já é legalizado: gestação decorrente de estupro, risco de vida da gestante e feto anencéfalo. Nestes dez anos, foram realizados 18.077 abortos legais pelo SUS, que custaram R$ 3,8 milhões no total – uma média de R$ 214 por procedimento. A taxa de mortalidade do aborto realizado dentro da lei e em segurança nesse período foi de 0,05%, ou cinco mortes a cada 10 mil procedimentos.
O Ministério da Saúde estima que sejam realizadas entre 950 mil e 1,2 milhão de interrupções voluntárias de gestação no Brasil a cada ano, segundo reportou a Folha de S. Paulo com base em um relatório da pasta enviado ao STF para subsidiar o julgamento da ADPF 442. Nos últimos dez anos, 2,1 milhões de mulheres foram internadas para tratar complicações do aborto, e 75% destes casos seriam abortos provocados. No total, o SUS gastou R$ 486 milhões com estes tratamentos entre 2008 e 2017, diz o relatório.
O Ministério disse à Gênero e Número que são estimadas mais de 250 mil internações por ano no SUS devido a complicações relacionadas ao aborto induzido e que as complicações graves somam 15 mil casos por ano.
Carolina de Assis é editora da Gênero e Número.