Começando a virar a mesa: a pequena-grande transformação da formação política feminina, por Por Flávia Batista, Tamara Crantschaninov e Thaisa Torres

06 de junho, 2019

Quinta-feira a noite, já passam das 22 horas e uma das salas de auditório da Câmara Municipal de São Paulo está lotada de mulheres de São Paulo, região metropolitana e interior do Estado. O debate continua acalorado entre as cerca de sessenta participantes: questões de gênero, raça, classe social e tantas outras se mesclam com os conteúdos das falas das palestrantes. É preciso encerrar o debate, já que muitas delas enfrentarão ainda uma longa jornada no transporte público e levantam cedo, no dia seguinte, para mais um dia de trabalho. Todas deixam o espaço com a mente cheia de questionamentos, provocações e temas que serão digeridos até o próximo encontro semanal.

(Folha de S.Paulo, 06/05/2019 – acesse no site de origem)

Quando iniciamos a proposta de um curso de política para mulheres que desejam se candidatar a prefeitas e vereadoras em 2020, não tínhamos dimensão do quão revolucionário seria estar na organização deste processo. Até então, não existia uma iniciativa semelhante na cidade de São Paulo.  Iniciativas multi ou supra partidárias ainda são recentes e raras, enquanto muitos dos desafios para as mulheres que desejam ser candidatas são comuns. Além disso, deixar para incluir mulheres na política apenas em ano eleitoral é uma prática recorrente, com partidos investindo muito pouco em seus quadros, especialmente novos quadros, no período pré-eleitoral. A existência de um espaço de formação, rede e  assistência à mulheres que querem ser políticas configura-se então como um espaço estratégico, que acreditamos ter um imenso potencial de alavancar campanhas femininas em 2020.

O resultado eleitoral de 2018 nos levou, assim como a outras mulheres que estudam e trabalham com política, a perceber que, embora a participação feminina tenha crescido no Congresso Federal, este crescimento é lento e está longe de atingir patamares de igualdade de gênero. Elegemos apenas uma governadora em 26 estados. Os principais nomes que disputaram a presidência foram homens, assim como o governo do Estado de São Paulo. Embora a legislação eleitoral tenha destinado 30% do fundo partidário para mulheres, a composição das listas de candidatos, bem como a distribuição do recurso entre as mulheres candidatas, não seguem critérios claros.

Queríamos que a Iniciativa Brasilianas fosse um espaço de aproximação entre mulheres que já estão na política institucional com mulheres que estão começando, ou ainda querem iniciar uma trajetória. Mas também de formação teórica e formação prática, que forneça ferramentas para pensarem estratégias locais e estaduais, para trabalharem em suas próprias campanhas. Outra decisão foi realizar o curso com mulheres de diversos partidos, com um variado perfil. Metodologias de campanhas costumam ser extremamente normativas, no sentido de desenhar a existência de um perfil ideal de candidato ou candidata, e isto acaba por afastar mulheres. Elegemos ano passado mulheres de variados perfis e queremos justamente mostrar isso no curso, que existem diferentes trajetórias, formas de atuação, e que mulheres podem ser elas mesmas e estarem na política institucional ao mesmo tempo.

Lançamos a proposta do curso de formação sem conseguir mensurar qual seria a recepção. Fomos surpreendidas ao recebermos mais de 700 inscrições, em um perfil bem amplo. São mulheres filiadas e não filiadas, de 15 a 68 anos, de 40 cidades do Estado de São Paulo, com experiência prévia ou não em política. Muitas que se declaram negras e/ou LGBT’s. Mulheres que pertencem a 15 diferentes partidos. E com interesses bem distintos. A princípio, mapeamos cinco diferentes perfis entre as inscritas, mulheres que desejam obter uma formação no tema, sem objetivos específicos; mulheres que são advogadas, professoras, jornalistas, ou seja, profissões que propagam ideias e causas, e que querem, por causa da profissão que exercem, conhecer mais sobre mulheres e política; mulheres que são assessoras, trabalham diretamente com política, mas não pensam em ser candidatas; mulheres que pensam em ser candidatas e querem entender mais sobre o tema; e por fim, mulheres que já foram candidatas anteriormente. Um grande número de mulheres não querem ser candidatas, mas querem apoiar campanhas femininas no ano que vem.

Política é um ambiente desgastante. Para mulheres, que normalmente já são menos remuneradas no ambiente de trabalho, possuem jornadas de trabalho dupla ou tripla, com afazeres domésticos e familiares, a política se torna ainda mais desigual e cansativa. Soma-se então a violência de gênero, praticada por homens que não aceitam que a política não é território exclusivo deles. Se a mulher é jovem, ou negra, ou lésbica, ou ainda, é jovem, negra e lésbica, por exemplo, enfrentará ainda mais preconceito e violência no ambiente político. Socialmente, as mulheres sabem que ao atuarem na política terão suas vidas muito mais reguladas socialmente do que as dos homens. É comum políticas ainda serem cobradas pelo que vestem, pelo corte de cabelo, com quem são casadas, enquanto homens estão a salvo deste escrutínio pessoal. Por fim, campanhas femininas recebem menos recursos, aumentando o caminho a ser percorrido por candidatas até a eleição.

Todos os incentivos para campanhas femininas são baixos, quando não nulos. A recente anistia aos partidos que não aplicaram os recursos legais em campanhas femininas evidencia este cenário. Somos relegadas, a todo momento, a um papel subsidiário na política. Muitas das participantes do curso de formação assessoram políticos há anos ou até décadas, mas nunca se colocaram no lugar de protagonismo político. Nossa proposta é inverter essa lógica e dar a mulher o espaço de representação política institucional. E por isso, acreditamos ser revolucionária a presença de sessenta mulheres em um auditório, pensando e construindo este processo, semana após semana.

Enquanto o debate nacional vai, muitas vezes, na contramão de incluir mais mulheres, com deputados e senadores homens querendo mudar nossa legislação eleitoral para acabar com cotas e financiamento de mulheres, o objetivo da Iniciativa Brasilianas é construir redes de apoio e acompanhamento das campanhas destas mulheres. No momento, o curso é organizado de forma completamente voluntária e sem financiamento, que se torna um desafio para oferecer de forma permanente as atividades. Já recebemos diversas solicitações para disponibilização de uma versão online do curso, bem como de sua realização em outros locais do país. Queremos que estas sessenta mulheres se transformem em seiscentas, seis mil. E que todas elas tenham condições de empreender campanhas a cargos políticos em pé de igualdade com homens. Que se elejam e revolucionem a política da mesma forma como tem nos revolucionado todas as quintas-feiras.

Flávia Batista, Tamara Crantschaninov e Thaisa Torres são gestoras de políticas públicas (EACH/USP) e organizadoras da Iniciativa Brasilianas.

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