Como a desigualdade social impacta no poder de decisão sobre quantos filhos ter

11 de abril, 2019

ONU faz um balanço do planejamento familiar nos últimos 50 anos em todo o mundo e alerta sobre armadilhas da pobreza

(O Globo, 11/04/2019 – acesse no site de origem)

Em 1956, 200 mulheres pobres de Porto Rico tornaram-se as pioneiras no uso da pílula anticoncepcional — sem que soubessem disso. Cinco anos antes, a fundadora da Federação Americana de Planejamento Familiar, Margaret Sanger, conseguiu o último impulso financeiro para a pesquisa do aguardado medicamento e escolheu este grupo de mulheres para colocar o método em prática em grande escala pela primeira vez. Apenas as informou sobre os possíveis efeitos colaterais, e muitas desistiram. Poucos anos depois, em 1960, a pílula já estava no mercado.

Hoje, mulheres do mundo todo exercem mais controle sobre sua vida reprodutiva do que em qualquer outro momento da História. O mais recente relatório sobre a Situação da População Mundial, elaborado anualmente pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), analisa o progresso na história do planejamento familiar.

“Ser capaz de decidir o número de filhos e quando tê-los abriu as portas para elas (mulheres) a uma vida não dominada pela maternidade e a criação dos filhos, e tem contribuído para a redução da desigualdade de gênero”, diz a análise.

Mas o relatório também se debruça sobre as armadilhas que permanecem para decidir sobre a fertilidade. E as abissais desigualdades.

Na China, 82% das mulheres usam métodos contraceptivos. No Chade e no Sudão do Sul, são somente 7%. Nesses dois últimos países, existe um mundo de obstáculos para se chegar a um centro de saúde, acessar um preservativo, um ginecologista, ou para receber educação sexual na escola.

O foco agora é em como as mulheres decidem quando, como e quantas crianças ter e como reduzir a desigualdade entre diferentes contextos.

— O que aconteceu nos últimos 50 anos nos dá a confirmação de que tomar decisões e executá-las muda a situação. Na Espanha, as mulheres do início do século XX tinham, em média, cinco filhos e 500 de cada 100 mil mulheres morriam no parto, agora são cinco. Hoje, 68% das mulheres espanholas usam métodos de contracepção — explica Isabel Serrano, da Federação de Planejamento Familiar do Estado.

Não apenas é essencial ter um ambulatório onde haja preservativos, por exemplo, mas também acesso real ao planejamento.

‘Corpos das mulheres continuam a ser campos de batalha’

Uma comissão internacional de especialistas da conceituada revista científica “The Lancet” incluiu no ano passado entre os padrões de saúde assuntos como o direito de controlar o próprio corpo, definir a sexualidade, escolher o companheiro ou companheira, e receber serviços confidenciais e de qualidade.

— Os corpos das mulheres continuam a ser os campos de batalha em que as discussões ideológicas são travadas com resultados devastadores — comentaram Richard Horton e Elizabeth Zuccala, editores da revista.

A tailandesa Rasamee, por exemplo, ocupa uma posição importante em uma das maiores empresas de seu país. Ela retornou ao trabalho dois meses após ter dado à luz seu primeiro filho (poderia ficar até três). Seus avós emigraram da China e consideravam que a escola era apenas para crianças, por isso sua mãe não frequentou a escola primária, mas Rasamee conseguiu se formar na universidade.

— As mulheres podem trabalhar e cuidar de si mesmas e não precisam depender de seus maridos — diz ela.

Luis Mora, responsável por Gênero, Direitos Humanos e Cultura da ONU, diz que há 25 anos a maioria dos países não possuía leis ou programas de saúde sexual e reprodutiva:

— Hoje, parece impensável que exista um país onde as mulheres tenham que recorrer a métodos de planejamento familiar em segredo, como minha mãe, que não tenham atenção ao aborto e que são discriminadas por serem pobres.

Pesquisa de contraceptivos para homens

O mundo logo percebeu a necessidade de facilitar a opção de decidir o número de filhos. Em 1976, mais de cem governos já forneciam informações e serviços. No entanto, a possibilidade de decidir é sempre influenciada pelo nível econômico das famílias.

“As mulheres de lugares mais pobres podem encontrar-se em situações em que há pouco ou nenhum acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva, o que se traduz em gestações não planejadas, aumento do risco de doença ou morte devido a complicações associadas à gravidez ou ao parto”, resumem os especialistas da ONU.

O que deve ser feito para eliminar as desigualdades? Os sistemas legislativos nacionais devem eliminar disposições discriminatórias que ainda existem como barreiras para o acesso de jovens, pessoas solteiras, migrantes, pessoas com orientações sexuais e identidades de gênero diversas a serviços e métodos contraceptivos.

Um estudo realizado pelo Instituto Alan Guttmacher estimou que, para serviços de saúde reprodutiva, materna e neonatal de qualidade em todo o mundo, seria necessário um aumento de 37% no orçamento para profissionais que distribuem os contraceptivos, enquanto o cuidado com as mães e recém-nascidos exigiriam um aumento de cerca de 20% em relação aos níveis atuais.

Os estudos também apoiam o papel dos homens como agentes ativos nos processos reprodutivos. O UNFPA propõe ações como o aconselhamento de casais, a fim de promover a comunicação e a resolução de conflitos, e “educação sexual abrangente que enfatiza o empoderamento das mulheres e os papéis e obrigações dos homens”.

— Quando analisamos a agenda de pesquisa científica, percebemos que vamos dar às mulheres poucas escolhas no futuro. Não há estudos sobre a contracepção em homens, continuamos dando a responsabilidade por esse trabalho às mulheres — disse Mora.

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