O relato de Fabiana*, 42, parece um filme de terror. À Universa, a analista de sistemas narra, segurando o choro, o dia em que o oficial de justiça e o conselheiro tutelar foram, em novembro de 2016, fazer a busca e a apreensão de sua filha Vitória*, então com quatro anos. “Ela gritava muito, estava em pânico”, diz a mãe. De acordo com Fabiana, o grande vilão dessa história era o próprio pai da criança. Ele havia conseguido inverter a guarda da filha com base na Lei de Alienação Parental após ser denunciado por ela pelo crime de estupro de vulnerável. O pai lançou mão da lei para dizer que a acusação — segundo ele, mentirosa — era uma forma da ex-mulher afastar a filha dele; ou, no jargão legal, ela estaria praticando alienação parental.
(Universa, 24/10/2018 – acesse no site de origem)
A lei de número 12.318 foi criada em 2010 para proteger menores de idade de brigas de ex-casais, em que um lado pode “manipular” a criança ou impedir o acesso do outro ao filho.
“A lei acaba, em muitas situações, por proteger suspeitos de praticar violência”, diz Valeria Scarance, promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo (SP) e coordenadora nacional da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid).
No caso de Fabiana, a legislação foi usada pelo ex-marido, de acordo com ela, depois que a filha disse que o pai passava álcool na genitália dela. “Eu não falava direito com ele, mas não tinha nenhum problema com as visitas dele”, explica a analista de sistemas, integrante do coletivo Mães na Luta, cujo objetivo é a revogação da lei. “Mas quando ela começou a falar isso, eu a levei até o conselho tutelar”, diz. Enquanto resolvia algumas questões com a assistente social, a filha fez um desenho que preocupou Fabiana e a profissional. Era uma menina ao lado de um homem todo vestido de preto. “Inicialmente, ela ficou muda, mas enquanto estávamos indo para a delegacia, ela me contou como o pai tentou penetrá-la”, diz.
Fabiana fez um Boletim de Ocorrência por estupro de vulnerável em junho de 2016, com o qual conseguiu uma medida protetiva, que proibia qualquer tipo de contato entre a criança e o pai. Após cinco meses, no entanto, ele conseguiu inverter a guarda de Vitória alegando alienação parental por parte de Fabiana.
“Quando se abre um inquérito policial de estupro de vulnerável, é iniciado, paralelamente, um processo civil relacionado à guarda e visitas da criança”, explica Valeria Scarance. E, na esfera civil, a decisão sai mais rápido; facilitando assim, segundo a promotora, que muitos agressores consigam usar a Lei da Alienação Parental para tentar se livrar da acusação de violência sexual. Isso acontece porque, normalmente, a investigação desse tipo de crime é delicada, lenta e exige alguns laudos. Ser ‘taxada’ de alienadora retira a força da palavra da mulher, tanto no âmbito civil como no criminal. O agressor argumenta no inquérito ou no processo que a mulher é tão ‘mentirosa’ que o juiz civil lhe deu a guarda ou permitiu visitas”, diz a advogada.
Invertendo a guarda
O Artigo 2º dessa lei especifica que é considerado alienação parental “apresentar falsa denúncia contra genitor para obstar ou dificultar a convivência dele com a criança ou adolescente”. Em casos de abuso sexual, o trecho pode deixar os denunciantes do processo de mãos atadas. “Quando mães noticiam violências sexuais contra seus filhos e não existe um laudo positivo, elas são quase automaticamente interpretadas como alienadoras”, explica Scarance.
O Direito Penal brasileiro dá conta que estupro de vulnerável é qualquer ato sexual praticado contra menores de 14 anos. Porém, o laudo do IML (Instituto Médico Legal), muitas vezes, atesta negativo, pois a violência pode não deixar vestígios. “Apesar do nome, nem sempre o abuso inclui penetração ou rompimento de hímen”, diz Ana Maria Iencarelli, psicanalista e presidente da
ONG Vozes de Anjo, cujo trabalho é o cuidado da infância e da maternidade no Rio de Janeiro (RJ). “Não tem a prova da materialidade, mas tem o relato da criança”.
Mesmo o depoimento da vítima pode não ser levado em consideração. Defensores dizem que a criança está repetindo um “texto decorado” feito pela mãe. “É uma lei que coloca a mãe e a criança em suspeita”, diz Valeria Scarance.
No drama de Fabiana, o laudo do IML de Vitória não constatou nada de anormal. Na audiência sobre o caso, Fabiana colocou o áudio da filha relatando o abuso. Ainda assim foi desacreditada. “O juiz achou um absurdo eu ter tudo documentado, mas agradeço por ter registrado. Se ele já estava brigando comigo mesmo tendo o áudio, imagina se eu não o tivesse?”, confessa a mãe.
O caso criminal acabou sendo arquivado sem investigações, mas Fabiana pretende reabri-lo. Enquanto isso, a mãe está sem ver Vitória há um ano e oito meses e a menina mora com o pai. “Minhas visitas foram proibidas em fevereiro de 2017, porque eu perguntava se o pai a estava tocando”, justifica. “Só com Deus e muita força para eu aguentar e acreditar que não estão fazendo nada com a minha filha”, diz Fabiana, chorando.
Interpretação e origem controversas
Segundo Fernanda Cabral, psicóloga especializada no público infantil e adolescente em São Paulo (SP), a Lei da Alienação Parental é um avanço para a saúde mental das crianças. “A falta de uma figura importante como o pai e a mãe pode afetar a autoestima e causar uma internalização da culpa”, diz. A especialista concorda, no entanto, que há uma interpretação “radical” da legislação. “Ela foi criada para tirar a criança do meio da briga de casal, mas a verdade é que, em muitas vezes, ela continua dentro. Agora tudo é alienação parental”.
De acordo com Ana Maria Iencarelli, há advogados que fazem um uso antiético da lei. “Tem uma especialidade de advocacia em torno disso”, pontua a psicóloga. Aparecida*, 58, acredita ser este o seu caso.
A dona de casa está em uma disputa com o ex-genro pela guarda do neto Bento*, de sete anos, desde 2012. Em 2015, o caso se tornou ainda mais complexo quando o menino, então com quatro anos, chegou em casa com um machucado no pênis após uma visita do pai. O menino contou para a psicóloga do caso que ele era abusado pelo pai e pelo avô paterno.
Neste ano, o inquérito criminal de estupro de vulnerável entrou na fase final de investigação. O genitor, então, contratou um novo advogado. Foi neste momento que ele entrou com um processo alegando alienação parental. “Houve uma audiência sem a presença do Ministério Público, em que o pai conseguiu a guarda. Entramos com a impugnação da decisão dessa audiência e, agora, uma nova será marcada. Pedimos para esperar o fim das investigações criminais, porém a juíza não concordou”, explica Aparecida. O garoto está, nesse momento, com a mãe e a família dela.
A dona de casa acredita que entrar com a acusação de alienação foi uma manobra do pai do menino com seu novo defensor para que o inquérito criminal seja desacreditado. “O processo de guarda tem seis anos e, justo agora, que ele mudou de advogado, veio essa novidade. Por quê?”, ela questiona.
Outra controvérsia sobre a lei é a sua origem na teoria de Richard Gardner. “Ele [Gardner] se especializou na temática de violência sexual, mas com um olhar voltado à defesa do pedófilo. Esse psicanalista prestou depoimentos favoráveis em vários processos de homens que eram investigados por casos de pedofilia e abuso”, narra a promotora de Justiça Valeria Scarance.
Revogar ou reformular?
O Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), órgão ligado ao Ministério da Justiça, divulgou uma nota pedindo a revogação da lei 12.318/2010. “Ela não está fundamentada em estudos científicos, bem como não há registros de outros países que tenham e mantenham legislação semelhante sobre o assunto”, diz o documento.
Mesmo com as suas contradições, há especialistas que consideram a lei um progresso. “A legislação precisa ser reformada, mas revogá-la seria um retrocesso. Ela precisa ser mais bem compreendida e sua aplicação necessita de apoio psicossocial e pedagógico”, comenta a psicóloga Fernanda Cabral.
Ricardo de Morais Cabezón, presidente da Comissão Especial de Direitos Infantojuvenis da OAB, de São Paulo (SP), afirma que a lei é essencial para garantir os direitos de progenitores e crianças. “Sem essa lei fica o caos, porque como você vai basear o pedido de uma revisão da decisão de guarda”, fala o advogado.
Para Ana Maria Iencarelli, o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) já tem todos os instrumentos para proteger o filho de um casal divorciado. “Então é uma lei desnecessária”, fala. “Está trazendo mais transtornos do que soluções”.
Valeria Scarance complementa que a Legislação da Alienação Parental leva mais em conta os direitos dos pais do que os da criança. “É uma fala muito comum do direito da criança de conviver com ambos os pais, mas a Constituição ordena a segurança integral dela”, fala a advogada. “Os direitos dos pais devem ficar em segundo lugar. A convivência com eles deve ser algo saudável, não forçado e danosa”.
Paralelamente às discussões, audiências de reversão de guarda continuam deixando crianças sob o poder de seus (supostos) abusadores. Apesar do inquérito criminal ainda estar em andamento, Aparecida já se conformou com a possibilidade do pai de Bento conseguir, legalmente, a guarda do menino. “Mas eu não entrego o meu neto de jeito nenhum para o homem que abusou dele”, confessou à Universa.
Natália Eiras