A juíza Tatiane Moreira Lima, 40, não tem tatuagens visíveis. Tivesse, escreveria: “Morro, mas não vejo de tudo”, brinca, passando o indicador no antebraço.
(Universa, 13/05/2019 – acesse no site de origem)
A mácula resumiria sua década de magistratura trabalhando com temas humanitários, como violência contra a mulher, estupro de crianças e tráfico humano. Em meio a essa trajetória, em 2016, ela mesma se tornou vítima quando um homem invadiu as dependências do Fórum do Butantã, na zona oeste de São Paulo, e a manteve refém sobre um líquido inflamável por cerca de meia hora. As imagens circularam na imprensa nos dias seguintes e mobilizaram autoridades sobre a necessidade de se aumentar a segurança nos órgãos judiciais do país.
Atualmente, atua no Fórum Criminal da Barra Funda com populações vulneráveis e atende diariamente crianças e jovens que sofreram agressões. “É difícil ouvir sobre o estupro de cinco, seis crianças por dia, porque você se identifica, se apega. No começo eu chorava muito. Pegava o sofrimento para mim e não conseguia dormir de noite. Aos poucos fui aprendendo a trabalhar com isso”, conta.
Tatiane começou sua carreira na magistratura em Francisco Morato, região metropolitana de São Paulo, após contrair uma tuberculose estudando para concursos. “Estava no limite das minhas forças. Meus pais me criaram com essa ideia de que o estudo modifica a pessoa, então eu sempre estudei muito”, diz ela, filha única de pais professores que migraram do Ceará para Campinas, no interior de São Paulo.
De Francisco Morato, lembra que sua sala ficava na “linha de tiro” da favela, ratos davam cria no escapamento dos carros dos funcionários e o Fórum praticamente alagava em dias de chuva. “Lidei com os piores crimes, os piores homicídios, os piores estupros. Era desesperador. Lá eu aprendi mesmo a ser juíza e questionei muito isso.”
Nos anos seguintes, passou por diversas cidades do interior do estado e por São Miguel Paulista, no extremo leste da capital, até chegar ao Fórum do Butantã, lado oposto da cidade, onde passou a se dedicar exclusivamente aos crimes domésticos. Nesse tempo, criou um grupo de atendimento a homens agressores, lançou uma campanha de combate ao assédio no transporte público e se envolveu com um projeto de uma companhia de teatro para colher denúncias de crianças vítimas de violência.
Exibe no celular fotografias tiradas recentemente ao lado dos seguranças que participaram de seu resgate em 2016 e afirma sobre o episódio de anos antes: “Não deixou traumas. Eu tento virar essa página, a gente precisa virar, para seguir com a vida”. Os policiais a surpreenderam em uma tarde de março em seu gabinete, no dia que marcava quatro anos desde o ataque.
Por que elas voltam?
“O amor venceu” era uma espécie de código usado entre os servidores do Fórum do Butantã para se referir às mulheres agredidas que retornavam ao judiciário ao lado de seus agressores. “Por que elas voltavam?” A juíza se questionava no começo da carreira.
“Passei a entender que elas voltam porque têm dependência, porque demora de oito a dez anos para sair de uma relação violenta. Ela volta porque não tem condições financeiras, está humilhada, destruída”, diz.
Naquela época, criou na Vara da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher dois grupos de apoio: um voltado às vítimas e outro, raro, aos agressores.
“Quando um caso virava processo, chamávamos as mulheres envolvidas ao Fórum e explicávamos a Lei Maria da Penha e medidas protetivas. Sentimos que isso melhorava muito o depoimento delas, que foram deixando de voltar atrás. De 2014 a 2016, atendemos 500 mulheres que passaram por lá, receberam informações e se tornaram pessoas multiplicadoras, porque elas contam para amigas que estão na mesma situação.”
Os responsáveis pelo projeto perceberam, porém, que não adiantava falar apenas com as mulheres, enquanto os agressores repetiam a violência – fosse com elas, ou com as companheiras seguintes. “O problema é ele”.
Criaram então, em 2016, o programa Cá entre Nós, primeiro grupo de atendimento voltado para agressores a surgir no interior do TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo). Durante 12 encontros, assistentes sociais e psicólogos da Vara trabalhavam com a desconstrução da masculinidade, as raízes da violência e papéis de gênero a partir de simulações e atividades de empatia, em que os homens se colocavam no papel de homossexuais ou das mulheres, por exemplo.
“Chamávamos 100 homens, apareciam 20, e deles dez ou cinco queriam fazer o curso. Mas a gente não se importava. Eram cinco homens que não iriam mais bater na mulher”, diz. “Com o tempo, eles passavam a reconhecer que eram violentos, que controlavam a roupa, o celular, coisas que não viam”. No primeiro grupo, os participantes pediram duas reuniões a mais. Nos seguintes, voltavam para compartilhar suas histórias com novos membros.
A Lei Maria da Penha prevê a criação de programas voltados para o violência doméstica e familiar contra a mulher. Ainda assim, o trabalho com agressores no Brasil é incipiente. “Essas iniciativas precisam ganhar mais luz, ser feitas com responsabilidade e como política pública. Olhamos muito para as mulheres, e isso é necessário. Mas e o agressor, o causador de tudo isso? Ele não é tratado e continua reproduzindo a mesma conduta”, avalia Tatiane.
O pior momento da minha vida
No dia 30 de março de 2016, a juíza estava em sua sala quando ouviu gritos vindos do corredor. Na ocasião, pensou que se tratava de desentendimentos na Vara da Família e Sucessões, algo rotineiro.
Ela foi até a porta do gabinete e se deparou com um homem usando um capacete com os dizeres “inocente”, uma mochila nas costas e uma garrafa na mão. O homem se apresentou para Tatiane, que perguntou se podia ajudá-lo. “Fica quieta, sua vagabunda”, lembra de ter ouvido como resposta.
“Eu demorei para me dar conta da gravidade do fato. Quando ele entrou, as outras pessoas que estavam na sala logo saíram, mas eu fiquei lá, meio atônita, achando que era uma pessoa perdida.”
O homem pegou Tatiane pelo pescoço, conforme ela narra, quebrou uma garrafa de litrão de Skol cheia de combustível e deitou a juíza sobre o líquido, esganando seu pescoço e se posicionando atrás de seu corpo. “Eu só pensava no meu cabelo, que estava encharcado. Se ele tivesse algo, eu pegaria fogo muito rápido.”
Eu achei que ia morrer, a mão dele era muito forte e faltava ar. Ele falava que passou a noite pensando em mim e no que poderia fazer comigo.
A polícia chegou minutos após e passou a negociar com o homem, que afirmava ser inocente. Ele mesmo pediu a um policial que gravasse o vídeo, que viralizou nos dias seguintes.
“Quando percebi o estado dele, comecei a dizer tudo o que ele queria. Disse que ele era inocente, que não era louco. Que eu condenava homens inocentes e recebia dinheiro para isso. Pensei em tentar por essa via, de conversar com um louco falando loucuras. E ele me respondeu com uma frase muito interessante: ‘Não vem com psicológico pra cima de mim não!”.
Ambos, na hora, se arranhavam sobre os cacos de vidro espalhados no chão, lembra Tatiane. Foi quando ela sugeriu, com a permissão do agressor, para um funcionário jogar uma coberta que estava em cima de um sofá próximo. Na manobra, em um deslize de atenção, os policiais lançaram sobre o homem o conteúdo de extintores de incêndio, conseguindo separá-los. O caso virou exemplo de resgate de reféns.
Foi muito desesperador, um dos piores momentos da minha vida. Parecia não acabar.
O agressor era um vendedor, então com 37 anos, que passava por dois processos: um na Vara de Família, para decidir a guarda de seu filho, e outro na Vara da Violência, por ter chacoalhado sua mulher. Ele já havia perdido a guarda do filho e tinha uma audiência naquele dia para o segundo caso, que seria julgado por Tatiane. Na mochila, levava duas garrafas pets de acelerador de chamas e pregos enroscados por ataduras – uma bomba caseira.
“Eu me questionei se tinha feito algo errado no processo, foi a primeiro coisa que fiz após o fato, ver se eu tinha errado em algum momento. E eu não tinha.” O vendedor cumpre agora uma sentença de 20 anos de prisão.
“O que a senhora acha do Moro”?
Após a agressão, Tatiane foi para o hospital na viatura de polícia, e depois para o IML (Instituto Médico Legal), fazer exame de corpo delito. Desse momento, lembra de o médico não olhar em sua cara. Foi muito desesperador, um dos piores momentos da minha vida. Parecia não acabar.
“Minhas vítimas de violência me falavam isso e eu nunca acreditei. Imagina, o médico trabalha só para isso. Mas eu sentei e a primeira pergunta que ele me fez foi o que eu achava do [agora ministro] Sergio Moro. Uma pessoa que sabe que você passou por um atentado, que eu poderia estar em estado de choque, me pergunta do Sergio Moro?”
Tatiane não anda hoje com escolta ou segurança, nem deixa de fazer nada que gostaria, diz. Para ela, do episódio fica sua empatia com os casos de violência com os quais costuma trabalhar. “Me fez entender mais o que a vítima passa. Isso me torna mais humana. Você sabe que é verdade, que você vai ser mal atendida. Eu não tive que ir na delegacia, mas muitas vezes você vai e é desacreditada. É uma violência institucional muito grande e, depois de ser vítima, você luta para não cometer também essa violência.”
Além disso, ficou também do episódio o alerta para a segurança nos órgãos judiciários do país. “Quando eu vi o vídeo eu tomei muito susto. Pensei: ‘meu Deus, foi tudo isso?’. Mas é uma coisa que talvez precisasse acontecer para a gente pensar a segurança dos Fóruns, que era muito precária. Foi um alerta para todo o Brasil. Outros estados não têm os mesmos recursos de São Paulo, mas sabem que os fóruns são uma bomba-relógio.”
O judiciário precisa se adaptar à criança
Do Butantã, Tatiane foi trabalhar com penitenciárias femininas do estado. Pouco depois, foi convidada para o Setor de Violência Contra Infante, Idoso, Pessoa com Deficiência e Tráfico Interno de Pessoa (SANCTVS), no Fórum Criminal da Barra Funda, zona oeste de São Paulo.
“Só faltou minorias quilombolas e LGBTI”, brinca, sobre a extensão de atendimento do setor em que trabalha, um anexo da 16ª Vara.
Lá, a juíza atende principalmente crianças vítimas de estupro. Para atuar, promoveu junto com sua equipe uma transformação dos espaços do Fórum, tornando salas de audiência e de depoimento mais acolhedoras aos menores.
Em um mutirão com funcionários, pintou paredes de cores diversas, acumulou doações de brinquedos e pendurou pelas salas bordados feitos por ela mesma. O setor passou a adotar também um sistema de gravação para colher depoimentos, para que as crianças não precisem reviver mais de uma vez as histórias contadas. Negocia ainda um convênio com uma entidade para trazer “cachorros terapeutas” aos encontros.
Nas audiências que tem com as vítimas, conta, tira os sapatos para parecer menos intimidadora e chega a pintar as unhas de meninas. No final, recomenda que peçam aos pais para comer um hambúrguer ou ir ao cinema. “Hoje você teve um dia muito difícil e estressante, pode pedir o que você quiser”, brinca, enquanto mostra imagens de crianças abraçadas a alguns dos brinquedos doados. “Parece que ela falou hoje de abuso sexual?”
“Muitas vezes, a gente é o primeiro ente do Estado que essas crianças conhecem. Ela conhece o poder paralelo, conhece a polícia que é ruim, invade a comunidade dela, bate nas pessoas. Não conhece um deputado, um senador, um governador. O juiz é um agente do Estado e eu quero mostrar que o Estado também pode ser humano”, diz.
Não é a criança que tem que se adaptar à Justiça, mas a Justiça que tem que se adaptar à criança. Não adianta a gente chegar e ser todo ritualístico e formal, falando sobre coito vagínico. Eu não vou fazer isso. E como a gente se adapta? Sendo humano, vivendo no mundinho delas.
Tatiane diz fazer hoje terapia e meditação, “para se esvaziar” e poder cuidar também da vida além-carreira – vive em São Paulo com o marido e dois filhos pequenos. Ainda trabalha, ao lado de um diretor, no argumento de uma série inspirada em sua experiência nos órgãos judiciários. Pretende vender o roteiro a um serviço de vídeo sob demanda. “Amo o que eu faço, mas é muito difícil. Não é todo mundo que consegue fazer”, conclui.
Beatriz Montesanti