Segundo Anielle Silva, irmã da vereadora assassinada em março desse ano no Rio de Janeiro, as violações têm início desde o momento da apresentação da mulher negra à sociedade. “As pessoas nos julgam já pelo olhar”, diz ela ao R7. “Já estudei em um colégio em que me pediram para não ir de cabelo solto, me mandaram usar algo para prender.” Ela lembra também que acompanhou a irmã no momento do parto em um hospital público e ouviu de uma das enfermeiras: “você vai aguentar porque é mais resistente.”
Demonstrações como essas são, segundo a diretora executiva do Instituto Identidades do Brasil, Luana Genot, manifestações baseadas em uma lógica colonial e escravocrata. “Trata-se de uma lógica de que a mulher negra deve estar duas ou três vezes mais preparada para enfrentar a sociedade”, diz. “O racismo é muito maior do que um insulto ou uma ofensa momentânea. É um sistema que opera de muitas formas, inclusive, de maneira institucional.”
Entre mulheres negras, as principais causas de morte materna, no momento do parto, são decorrentes de hipertensão, hemorragia e infecções. O Ministério da Saúde recomenda, pelo menos, seis consultas médicas durante o pré-natal. A medida é cumprida por 74,5% das mulheres, 55,7% entre as negras e 54,2% entre as pardas. Os números escancaram as dificuldades enfrentadas por mulheres negras para acessar a saúde.
Leia mais: Professora pede para criança de 4 anos prender ou alisar o cabelo
Passado o desafio de dar à luz, a mulher negra ainda tem de se preparar para a criação dos filhos em ambientes com possíveis manifestações de racismo. A criança negra é alvo de comentários discriminatórios por parte de colegas, professores ou ainda pior, das próprias instituições de ensino. Para a cientista social Luciana Bento, que escreve para um blog de maternidade para mulheres negras, é importante compartilhar experiências sobre as crianças dos filhos em ambientes racistas.
Em um de seus relatos, ela conta sobre quando adquiriu em um supermercado comum uma boneca negra. “Que as milhas filhas possam crescer encontrando com naturalidade brinquedos representativos, que não pensem sequer por um instante que não existem bonecas pretas porque elas não são bonitas.” No caso da criação dos meninos, Luciana afirma que a troca de experiência com outras mães negras é relevante pelo fato de serem a parcela da população mais vulnerável aos homicídios.
Luana também cuida da educação da pequena Alice, de oito meses, no que se refere às questões de gênero e raça. “Tenho me preocupado em comprar uma boneca preta, mostrar referências de pessoas negras”, diz. “Ela precisa ter essas referências desde o princípio para que lute contra manifestações racistas que vão acontecer.”
Ainda que as cotas para negros em universidades públicas tenham transformado o acesso à educação para essa parcela da sociedade, a desigualdade no país ainda é gigantesca. De acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o percentual de mulheres brancas com ensino superior completo é 2,3 vezes maior do que o de pretas ou pardas. Enquanto o índice do primeiro grupo é de 23,5%, o do segundo é de 10,4%.
O acesso à educação e ao mercado de trabalho por mulheres negras é, segundo Luana, um dos maiores desafios às mulheres negras. “É preciso lutar para que esse acesso seja universalizado e para que a mulher negra ocupe todos os lugares e não os que foram determinados para ela ocupar”, diz. “Assim, as meninas negras crescerão se enxergando como potenciais.”
O caminho, porém, não é fácil. Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), divulgado em outro desse ano, apontou que mulheres negras estão 50% mais suscetíveis ao desemprego do que outros grupos. Além disso, entre o segundo trimestre de 2014 e o primeiro trimestre de 2017, mulheres negras representaram a fatia com maior aumento absoluto na taxa de desemprego, uma variação de 8,8 pontos percentuais.
Leia mais: Homens brancos ganham 63% a mais que mulheres negras
“Na hora de entregar o currículo, muitas mulheres relatam que se o perfil do cargo requer muita exposição, as candidatas negras são rejeitadas”, afirma Luana. Um levantamento do Instituto Identidades do Brasil afirma que seriam necessários 150 anos para que oportunidades entre pessoas negras e não negras se equipararem.
Espaços públicos e alvo da violência
Ao mesmo tempo em que aumentou o número de assassinatos de mulheres negras nos últimos anos no país, como ocorreu com Marielle Franco, aumentaram também manifestações, denúncias e mobilizações em torno dos direitos das mulheres negras. Segundo Luana, o empoderamento da mulher negra se deu, principalmente, por meio da ampliação de políticas públicas colocadas em práticas.
Muitas delas, como as cotas, são consideradas por especialistas como exemplos positivos na diminuição da desigualdade estrutural e outras ainda não saíram do papel. “Ainda não vemos disciplinas que coloquem o estudo da África como um continente múltiplo em saberes”. Nesta terça-feira (19), dia da Consciência Negra, o Instituto lançará uma campanha para abordar a diferença entre salários para profissionais negros e não negros.
“Estamos sempre tendo de lutar e provar nessa existência”
Ainda assim, muito ainda precisa ser feito. Segundo Anielle Franco, mulheres negras saem muito cedo de casa e voltam muito tarde. Isso, explica, as coloca na linha de frente da violência. “Estamos sempre tendo de lutar e provar nessa existência”, diz. Ela conta que Marielle, quando começou a trabalhar nos espaços públicos de poder tinha dificuldades em aceitar algumas características. “Ela ficava incomodada com o cabelo, colocada uma faixa para disfarçar, só depois foi aceitando melhor. Percebo que muitas pessoas começaram a se aceitar como são.”
Hoje, Anielle acredita que as pessoas, sobretudo, as mulheres negras estão falando mais e ocupando espaços onde antes eram rejeitadas. “Depois da tese da minha irmã que falava sobre ser mãe solo, muitas mulheres foram procurá-la para compartilhar essas experiências”, diz. “Na própria política, a morte dela acentuou o desejo de participação de uma forma bastante visível.”
Velado e escancarado ao mesmo tempo no país, o racismo ainda é uma prática recorrente. Mas, à medida que as pessoas conseguem questionar a lógica racial dos espaços públicos, explica Luana, é possível falar em alguma mudança. “Ainda é muito difícil, mas diversas mulheres negras têm conseguido reivindicar seus direitos de uma forma mais ampla.”
Por Fabíola Perez, R7