Em artigo, Ana Carolina Diniz conta como é criar uma criança negra em uma sociedade racista, e alerta: ‘É obrigação de toda mãe que tenha o mínimo de consciência social reconhecer a desigualdade racial e lutar por um futuro diferente’
(O Globo, 12/05/2019 – acesse no site de origem)
Eu sempre quis ser mãe. Sempre. Os anos passaram, a estabilidade econômica-financeira-emocional não veio, e o tal momento certo não chegava. Mas, aos 34 anos, ela chegou: de surpresa, sem esperar, minha filha chegou. Há cinco anos, me tornei uma mãe de menina.
Quando um feto é fruto de um casal interracial, além do gênero, outra especulação presente nas conversas é sobre a cor da criança. “Será que vai te puxar? Ou vai ser branca?”, “Vai conseguir clarear a família, hein!”, frases que ouvi durante toda a gravidez, em tom de suposta brincadeira. Pós-gestação, o padrão de pergunta mudou: “Ela é tua filha? Nem parece, é clarinha”, “Que sorte a dela”.
Esta última é tão arraigada de racismo que chega a machucar. Porque me faz lembrar de episódios da infância que parecem ter acontecido ontem. De classe média no subúrbio carioca, sempre fui uma das poucas negras no colégio particular. No balé, o primeiro gosto amargo do racismo: as coleguinhas brancas não me dirigiam a palavra. Na piscina de um clube, a agressão de um grupo de meninos ecoa até hoje, mais de 30 anos depois, na minha cabeça: “olha a neguinha! Ela não sabe nadar”. Na televisão, no cinema, nas propagandas, não tinha ninguém como eu. Não compartilhei o mesmo sonho de ser paquita da Xuxa. Nunca me vi representada ali.
Provavelmente, minha pequena não irá passar por traumas assim. No caso dela, o impacto será por ser filha de uma negra. Meu trabalho diário é criar uma cidadã que saiba que a vida pode ser mais difícil dependendo da sua tonalidade de pele.
Se você toca no assunto apenas na data supostamente comemorativa (13 de maio) no trabalhinho da escola, você é privilegiado, sim. Uma mãe negra – independente da classe social – não tem essa opção. Porque ela sabe que a cor do filho pode ser sentença de morte, apenas por correr na rua ou usar um guarda-chuva. Porque sabe que vão olhar com desconfiança quando ele entrar no ônibus e irão atravessar a rua quando vier em sentido contrário. Sabe que vão duvidar de sua capacidade intelectual.
O assunto é inerente ao seu dia a dia. Além das preocupações básicas – alimentação, moradia, saúde, estudo –, ela tem o peso de tornar o filho forte suficiente para sobreviver a esta sociedade. Ela tem que fortalecer sua autoestima, criar mecanismos de defesa, lutar contra uma supremacia branca na educação e professores despreparados, ensaiar frases prontas para reagir a quem critica o nariz e a como agir numa dura policial. É doloroso, é cansativo.
Você acha que isso já “não cola muito”? Então saiba que, no mesmo subúrbio carioca, nos dias de hoje, crianças aprendem na escola e chegam em casa falando que o lápis de cor bege é “cor da pele”. Se não fosse pelo trabalho de mães negras atentas, a perpetuação da cor branca como algo normatizado iria ser transmitida para outra geração. Saiba que crianças novinhas de 3, 4, 5 anos, caçoam do cabelo crespo do colega negro, destruindo a autoestima de um indíviduo que acabou de nascer. E lá está a mãe atenta e leoa, que bota a discussão na mesa e não deixa barato. Para alguns, é barraqueira. Para nós, é questão de sobrevivência.
Se você romantiza a maternidade, você entendeu tudo errado. É obrigação de toda mãe que tenha o mínimo de consciência social reconhecer a desigualdade racial e lutar por um futuro diferente. Não sabe como? Leve seu filho para assistir a filmes e a peças com protagonistas negros (“Bituca” e “Pequeno príncipe preto”, por exemplo). Leia livros com a temática, pesquise, se importe. E, principalmente, dê exemplo. Quantos amigos negros você tem? Quantos deles frequentam a sua casa? O racismo existe sim e – ao contrário de que alguns dizem por aí – não é coisa rara no Brasil.
Ana Carolina Diniz é jornalista