A mente de Y. regride até quando ela foi estuprada por assaltantes dentro de casa onde morava em Mauá, na Grande São Paulo, em dezembro de 2017. Ela só conseguiu voltar a pensar melhor sobre essas memórias com a ajuda de um psiquiatra, mais de um ano depois.
(Universa, 11/03/2019 – acesse no site de origem)
Foi só ali, diante do profissional, que conseguiu tomar forças para compartilhar consigo mesma e com mais gente o que aconteceu. Depois da sessão, ela diz ter voltado para casa e contado ao marido, que desde então tornou-se um homem mais nervoso, preocupado. Enquanto era agredida, o filho, diagnosticado com autismo, permaneceu trancado no quarto.
Y. retornou de forma dolorosa a essas lembranças, mas ainda enfrenta o duro obstáculo de retornar ao dia a dia.
Diagnosticada com estresse pós-traumático, afastou-se do trabalho e tem picos de ansiedade e depressão. “Tem dias que parecem que meu mundo afunda”. Tentou o suicídio.
“Eles não me mataram, e eu consegui sair de tudo isso. Decidi, só após duas tentativas de morrer, que iria parar de me machucar”, diz à Universa. “Ainda assim, ouço comentários desagradáveis a profissionais da saúde a quem conto, como ‘agradeça a Deus por não terem te matado'”.
Assim como milhares de mulheres, crianças e adolescentes, Y. sofre com as sequelas da violência sexual.
Por medo de ser julgada e ouvir comentários constrangedores, ela não fez um boletim de ocorrência. Se essa história te choca, saiba que há centenas de mulheres que não notificaram a polícia por medo ou vergonha. E, ainda assim, o número de registros desse tipo só cresce no estado de São Paulo.
Quem são as vítimas
A Universa analisou 11.763 registros de ocorrência de estupro e estupro de vulneráveis ocorridos no estado de São Paulo em 2018. Isso quer dizer que todos os dias são feitos 32 boletins de ocorrência no estado. Nos últimos dois anos, o estado tem percebido uma crescente de casos de violência sexual, o que indica aumento das denúncias.
Nem todos os boletins de ocorrência obtidos pela reportagem tem informações precisas sobre quem são as vítimas, onde vivem ou como foram atacadas. Mesmo assim, foi possível identificar 2.249 vítimas de estupro (acima dos 14 anos). Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Nesse número, foram identificadas 2.112 mulheres, com média de idade de 27 anos; 137 pessoas foram identificadas como do sexo masculino. Somando homens e mulheres, os dados são os seguintes:
Quem são as vítimas
- A maioria dos crimes aconteceu na casa das vítimas: 1179 casos.
- Foram 740 estupros registrados em vias públicas, estradas e terrenos baldios;
- 330 em lugares fechados, sejam públicos ou privados (que vão de estações de trem, metrô a hospitais, mercados, shoppings, etc.)
- 906 vítimas eram pretas e pardas; 1317 brancas e 6 amarelas; 20 não foram informadas.
- 379 estudaram até o ensino fundamental; 136 vítimas afirmaram ter ensino superior completo; 102 ainda universitárias; 625 até o ensino médio; 16 eram analfabetas e o restante relacionado à escolaridade não foi preenchido.
Foram identificados 1573 suspeitos da agressão. A média de idade deles é de 35 anos. Em apenas quatros casos, a denúncia pontuou que o suspeito foi o marido ou o parente — o que não significa que a quantidade de crimes desse tipo seja pequena. Esse é mais um dado que sugere a subnotificação.
Vale constar que o boletim de ocorrência é apenas o estágio inicial de uma queixa. Após levada a denúncia à polícia, o caso é investigado só para, então, o suspeito ser considerado culpado ou não pela Justiça. A pena por estupro vai de 6 a 10 anos.
O que dizem as autoridades
Segundo a Secretaria de Segurança de São Paulo, “o aumento do índice de estupro pode ser explicado por dois fatores: é um delito normalmente praticado em ambientes internos, fora do alcance do policiamento ostensivo”.
E acrescenta: “a alta nos registros de crimes de estupro demonstra que cresce a motivação das vítimas para denunciar a violência sofrida. Além disso, campanhas realizadas por órgãos públicos e entidades privadas incentivam o registro formal, importante para balizar as políticas públicas de Segurança”.
O estupro de vulnerável é quando um menor de 14 anos sofre a violência sexual, quando tem deficiência, enfermidade ou qualquer outra característica que a impossibilite de reagir.
Foram registrados 7.843 boletins de ocorrência envolvendo estupro de vulnerável. Desse volume, foi possível identificar 5.225 vítimas. A média de idade dessas vítimas vulneráveis é de 10 anos de idade.
O número de casos registrados em residências é ainda mais alarmante — 4.032 registros. Outro alerta que comprova que o perigo pode estar dentro da casa.
Marcos Candido