Sem enganos
(Folha de S.Paulo, 23/02/2019 – acesse no site de origem)
Nos últimos dois anos, o debate sobre idade mínima de aposentadoria para homens e mulheres voltou à baila. Contudo, não forjou um consenso sobre que parâmetros estabelecer para que a igualdade de gênero seja um pilar sólido do nosso contrato social e não apenas um item num rol de intenções.
O governo Bolsonaro trouxe, finalmente, a público sua proposta de reforma da Previdência, o que deve nos assegurar, enquanto sociedade, o direito ao debate, à compreensão do que está em jogo e às escolhas que devem nortear umas das maiores conquistas da humanidade nos últimos 140 anos: a garantia de uma renda de reposição digna quando chega o tempo da inatividade forçada, em razão do envelhecimento ou de enfermidade.
Essa renda não é para prevenção da pobreza, mas visa, sobretudo, suavizar o consumo assegurando que a transição para a fase última do ciclo de vida se fará preservando dimensões cruciais ao padrão de bem-estar prevalecente quando da atividade.
A proposta de reforma em pauta prevê idade mínima de aposentadoria distinta para homens e mulheres, aqueles aos 65 anos e estas aos 62 anos, em ambos os regimes. O texto, entretanto, prevê reajuste das idades mínimas, a qualquer momento, para acompanhar o aumento da esperança de vida dos brasileiros. Logo, o que parece consolidado na proposta, tampouco o é, e a tendência implícita é uniformizar rapidamente a idade mínima para os dois sexos. Que ninguém se engane.
Quem mais perdeu no quesito idade mínima foram as mulheres trabalhadoras rurais, em regime de economia familiar. Podiam se aposentar aos 55 anos, agora ao se tornarem sexagenárias. E a vida no campo, pra quem cuida de roçado, não é lá de sombra e água fresca.
Mas idade mínima é apenas um dos parâmetros na equação básica da Previdência. Outro, fundamental, é o tempo de contribuição. Ao fim e ao cabo, é o que define o valor do benefício previdenciário. Na letra da proposta, a integralidade do benefício só será assegurada após 40 anos de contribuição. Exigem-se ao menos 20 anos de contribuição para obter um benefício proporcional, de menor valor.
Sabendo-se que as mulheres registram invariavelmente taxa de atividade menor que a dos homens (62% contra mais de 75%); taxa de desocupação superior (13,6% contra 10,5%); que seus rendimentos correspondem a 77% daqueles auferidos pelos homens, além de serem quase metade dos informais e maioria no emprego tempo parcial —sinais de ocupação intermitente—, entende-se que sua capacidade de contribuir de forma ininterrupta ao sistema seja débil. Portanto, sua densidade contributiva é baixa. Por essa razão, terão imensa dificuldade em cumprir com regras mais duras de tempo de contribuição.
É bem verdade que a reforma trabalhista aprovada na gestão Temer, levando a uma flexibilização radical das relações de trabalho, a caminho de ser aprofundada, deve contribuir para reduzir esse hiato de gênero, não por uma melhora da posição relativa das mulheres, senão por uma deterioração ainda mais acentuada do emprego masculino.
Desnecessário recordar que a velhice é um fenômeno social predominantemente feminino. Dados os termos em que se pretende enquadrar a nova Previdência, a pobreza deve agravar-se entre mulheres da terceira idade, notadamente nas camadas menos favorecidas.
Isso é flagrante novamente no caso das rurais. Elas —como os homens— passam a ter de contribuir compulsoriamente ao longo do ano fiscal. E num valor elevado para quem, na economia de subsistência, consome em casa muito do que planta, quando a produção não é condenada por seca, enchente ou lama tóxica.
Sim à preservação efetiva de idades distintas para aposentadorias de homens e mulheres e à redução do tempo de contribuição daqueles a quem a reprodução da nossa profunda heterogeneidade estrutural nega o direito à igualdade.
Lena Lavinas é professora titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro