Quatro décadas depois de Doca Street alegar “legítima defesa da honra” após o assassinato da companheira Ângela Diniz, brechas persistem e mortes de mulheres chegam a índices alarmantes no País. Santa Catarina aparece em 2º lugar no ranking da violência.
(ND Online, 18/02/2019 – acesse no site de origem)
Em apenas quatro anos, o volume de processos envolvendo feminicídios tentados e consumados cresceu 316,7% nos gabinetes do Poder Judiciário de Santa Catarina. Significa que 697 mulheres foram assassinadas ou escaparam por pouco da morte no estado catarinense, que é o 2º do ranking de violência doméstica segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O Brasil é o 5º país que mais mata mulheres no mundo, conforme a Organização Mundial de Saúde. Essa história não é sobre “mimimi”, é sobre violência, e é preciso falar dela.
“QUEM AMA NÃO MATA!”. O slogan foi difundido pela primeira vez por movimentos feministas em 1979, após o julgamento da morte de Ângela Diniz – socialite brasileira assassinada com quatro tiros pelo companheiro, em Búzios, no Rio de Janeiro. O autor do crime (que ocorreu em 1976), Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street, alegou legítima defesa da honra, o que resultou em uma pena de apenas dois anos de prisão. O crime justificado pela “violenta emoção” teria ocorrido por ciúmes. O caso marcou o início dos debates sobre os assassinatos considerados “passionais”.
As vozes de mulheres inconformadas com o resultado do julgamento reverberaram e provocaram o anulamento do júri popular. Dois anos depois, Doca voltou ao banco dos réus e foi condenado a 15 anos de prisão. Cumpriu cinco no cárcere, entre os regimes fechado e semiaberto.
Trinta e quatro anos após o segundo julgamento de Doca Street, em março de 2015, a Lei de Feminicídio (Lei 13.104/2015) foi criada e passou a integrar o Código Penal como uma qualificadora do homicídio simples, não só com a prerrogativa de aumentar a pena de seis a 12 anos para 12 a 30 anos de prisão, mas para dar luz aos crimes cometidos contra mulheres por razões da condição de sexo feminino tanto em circunstância de “violência doméstica e familiar” quanto “pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. A nova lei foi mais um divisor de águas na discussão sobre a violência contra as mulheres.
“O que se tenta traduzir com o tipo penal do feminicídio é que matar mulher é algo estruturante na nossa sociedade, que ainda tem preconceitos de gênero. Não há igualdade de direitos e, por uma cultura machista, cuja compreensão é a de que as mulheres não são detentoras dos mesmos direitos que os homens, elas podem sofrer violência e, inclusive, serem mortas”, enfatiza Paula Machado, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo.
Desde então, a figura do homicídio privilegiado prevista no artigo 121 do Código Penal, que atenua a pena de assassinatos cometidos por “violenta emoção” – como foi considerado o caso de Doca Street no primeiro julgamento, não cabe mais para os casos de feminicídio.
Por isso, movimentos feministas e juristas atuantes na área lutam para desvincular o termo popularmente conhecido como “crime passional” dos assassinatos de mulheres, uma vez que remete à violenta emoção. Na avaliação dos especialistas, o feminicídio é um crime cometido por ódio, e não por amor.
“Os tempos são outros, é uma mudança de cultura jurídica, inclusive. Quando se fala em crime passional, se induz a condição de atenuante de pena, dá a impressão de que estamos tratando de algo natural. O sujeito que mata a mulher não está apaixonado (como sugere o termo), é uma relação patrimonial, de coisa (posse)”, explicou o promotor de Justiça Alexandre Carrinho Muniz, da 8ª Promotoria de Justiça de Palhoça e que atua no Tribunal do Júri da comarca.
A defensora pública de São Paulo faz uma ressalva e lembra que, apesar de a Lei do Feminicídio ter dado notoriedade à violência contra a mulher, ela ainda deixa brechas e não protege pessoas transexuais que são vítimas da mesma violência. Mesmo que a lei não especifique a particularidade do gênero, sua aplicação já tem ocorrido tanto para as mulheres cisgênero (que se identificam com o sexo de nascimento) quanto para as mulheres transgênero (que não nasceram com o sexo feminino, mas se identificam como tal), conforme a interpretação de cada magistrado.
“A própria Lei Maria da Penha traz o conceito de violência em razão de gênero, mas no momento de aprovar o projeto de lei (sobre a Lei do Feminicídio), isso ficou de fora e, por consequência, há uma população que sofre muita violência de gênero, que é a população trans”, acrescentou Paula Machado.
As investigações de um feminicídio e a diretriz nacional
Pouco mais de um ano após a Lei do Feminicídio ter sido sancionada, o governo federal lançou, em abril de 2016, as Diretrizes Nacionais de Feminicídio. O documento indica que a investigação policial deve partir do princípio de que toda morte de mulher é um feminicídio, para que todas as circunstâncias do crime sejam levadas em consideração. Diferente de outros tipos de assassinatos, a apuração do feminicídio engloba aspectos da vida pessoal, familiar, afetiva e profissional da vítima.
Conforme o documento, o objetivo da ferramenta de orientação é possibilitar que tanto a investigação como o desdobramento processual sejam realizados “com a perspectiva de que essas mortes podem ser decorrentes de razões de gênero, cuja causa principal é a desigualdade estrutural de poder e direitos entre homens e mulheres na sociedade brasileira”.
Diretrizes Nacionais de Feminicídio: Documento completo
“Um bom exemplo é o caso da Tatiane Spitzner [advogada que foi agredida pelo marido e jogada do quarto andar, em 22 de julho do ano passado, no Paraná]. A primeira impressão era a de que ela tinha cometido suicídio. A investigação foi atrás e detectou a violência, depois é que o laudo cadavérico chegou e demonstrou que ela já estava morta antes de cair”, explicou o promotor Alexandre Carrinho Muniz.
Após o assassinato de Tatiane, vídeos do circuito interno de monitoramento do prédio onde a advogada morava com o marido Luís Felipe Manvailer, 32 anos, em Guarapuava, foram divulgados. As imagens chocaram o país. Nelas, Manvailer aparece perseguindo a mulher e a agredindo do estacionamento ao elevador. Tatiane tentou se desvencilhar, mas o marido era mais forte fisicamente e impediu a fuga. Testemunhas relataram à polícia que a advogada queria se separar dele.
Manvailer foi indiciado pelo feminicídio, que é uma qualificadora do homicídio, além de outros agravantes que foram incluídos, como asfixia mecânica, dificultar a defesa da vítima, e motivo torpe. O homem negou ter empurrado a mulher da sacada do apartamento.
Feminicídios cresceram 316,7% em quatro anos
Apesar da evolução na legislação desde a criação da Lei Maria da Penha, em 2006, que regulamentou não só os tipos de violência contra a mulher, mas a aplicação de medidas de proteção, os órgãos públicos ainda têm dificuldade em compilar dados – o que poderia contribuir para o desenvolvimento de estratégias de prevenção.
O Tribunal de Justiça alega que o sistema interno é obsoleto, uma vez que há inconsistência no cruzamento de informações. Apesar da dificuldade, o TJ detectou, a pedido do ND, que 697 casos de feminicídios tentados e consumados chegaram ao conhecimento do Judiciário nos últimos quatro anos – uma média de 14 crimes por mês.
Ainda que não tenha sido possível especificar quantos crimes foram consumados e quantos foram tentados (cujas vítimas sobreviveram), o levantamento demonstra um crescimento assustador da violência no Estado. O salto no período foi de 316,7% (de 60 casos em 2015 para 250 em 2018).
“Estamos engatinhando nessa questão da violência contra a mulher em Santa Catarina, mas estamos dando os primeiros passos para a mudança. O problema é da sociedade e das instituições, porque não se deram conta do problema e levaram a questão de uma forma muito tranquila. Só que a coisa foi crescendo e agora está insustentável”, detectou a desembargadora Salete Silva Sommariva, que é responsável pela Cevid (Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar).
Os dados revelam ainda que:
- Pouco mais da metade dos processos (313) tiveram algum tipo de sentença, o que não significa que o trâmite terminou.
- Em apenas 69 deles o autor já foi condenado pelo Tribunal do Júri.
- Em outros 132, o réu ainda aguarda pelo julgamento, também no Tribunal do Júri.
- Em 13 casos foi extinta a punibilidade porque o autor do crime morreu.
- Ao menos 22 processos resultaram em “impronúncia” do réu, ou seja, ele não será julgado pelo Júri, foi absolvido ou o crime prescreveu sem condenação.
- Os 77 restantes tiveram desdobramentos distintos com embargos, pedidos de habeas corpus ou correções de penas.
“O número de processos envolvendo feminicídios aumentou muito e a própria lei (do feminicídio) tem contribuído para despertar a sociedade. De dois anos para cá é que todos começaram a se dar conta de que isso não é brincadeira, é uma epidemia e nós (sociedade e instituições) temos que dar as mãos para diminuir essa questão”, acrescentou Sommariva.
Como garantia de mudança, a desembargadora destaca projetos que estão sendo desenvolvidos em alguma comarcas de Santa Catarina com apoio do Ministério Público, OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), polícias, prefeituras e sociedade civil.
Em Balneário Camboriú, no Vale do Itajaí, advogadas da OAB, com apoio da Dpcami (Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso), prestam atendimento jurídico voluntário a vítimas de violência doméstica. Em Meleiro, no Sul do Estado, as instituições públicas criaram um protocolo de atendimento às vítimas com foco na prevenção e no acolhimento.
Em Chapecó – município com maior número de pedidos de medidas protetivas nos últimos quatro anos (1769) -, está sendo desenvolvido o projeto Refletir, que é coordenado pela Central de Penas e Medidas Alternativas. Nele, os autores de violência são o alvo do atendimento. O objetivo é levá-los à reflexão para evitar que a violência se perpetue ou se repita com outras companheiras.
Em Cunha Porã, no Oeste, o projeto Rede Catarina, tocado por policiais militares, atende casais com histórico de violência doméstica que decidiram manter o matrimônio. Eles são incluídos no programa e recebem visitas dos PMs, que esclarecem questões sobre violência e o machismo.
Em Dionísio Cerqueira, no Extremo-Oeste, as instituições organizam audiências de conciliação ou mediação de caso para solucionar questões relacionadas às visitas dos filhos e prestação alimentícia.
SC é o 2º estado mais violento para as mulheres
A inconsistência de dados não é uma exclusividade do Tribunal de Justiça. A SSP/SC (Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina) começou a adotar o termo “feminicídio” apenas nos boletins semanais divulgados neste ano. Porém, a estatística disponível no site do órgão ainda divide as mortes de mulheres da seguinte forma: homicídio doloso contra a mulher e homicídio doloso contra a mulher em contexto de violência doméstica.
Só que a interpretação do feminicídio vai além da violência doméstica, uma vez que a lei determina a aplicação da qualificadora nos casos em que a vítima é morta pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A interpretação desse ponto da lei ainda provoca ambiguidade em sua aplicação.
“As perguntas que precisam ser respondidas são: A vítima foi morta por que era mulher? E se fosse um homem, ele teria morrido naquela circunstância? A morte decorrente de estupro é um dos exemplos”, destacou a advogada e presidente da comissão de combate à violência doméstica do IASC (Instituto dos Advogados de Santa Catarina), Tammy Fortunato.
Para Sommariva, a morte da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, que completa um ano em março, pode ser um exemplo de feminicídio fora do contexto da violência doméstica, por conta das bandeiras que ela defendia e por tudo o que ela representava: mulher negra, defensora dos pobres moradores das favelas e homossexual.
Outros especialistas já manifestaram a mesma interpretação, como foi o caso da subprocuradora-geral da República, Ela Wieko, que é coordenadora do Comitê Gestor de Gênero e Raça do Ministério Público Federal. Em entrevista ao Huffpost, ela lembrou que o poder político ainda é muito patriarcal e que o incômodo, pelo simples fato de uma pessoa ser mulher, nem sempre é percebido conscientemente pela sociedade. Como as investigações do caso Marielle ainda não foram concluídas, não há tipo criminal definido para este caso.
O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, pesquisa realizada pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), revelou que Santa Catarina é o segundo estado da federação com a maior taxa de violência doméstica (368,1 por 100 mil habitantes), ficando atrás apenas do Rio Grande do Sul (398,0 por 100 mil habitantes).
Já as taxas de feminicídio não são tão expressivas se comparadas a de outros estados. Segundo um dos membros do FBSP, sargento Elisandro Lotin, a SSP/SC demorou para atualizar os dados de feminicídio e separá-los dos homicídios de mulheres. Como os dados do Fórum levam em consideração apenas os feminicídios, pode ter havido inconsistência.
Na página da SSP/SC, os feminicídios são relacionados como aqueles que ocorrem em contexto de violência doméstica. Segundo a estatística pública do órgão, 192 mulheres foram assassinadas nessas condições nos últimos quatro anos. Se levarmos em consideração as tentativas de feminicídio, esse número sobe para 612 registros.
O número de homicídios de mulheres, no entanto, incluindo os feminicídios, é mais do que o dobro (426) no mesmo período. Somando as tentativas de homicídio, chega-se a 1.046 casos. Subtraindo os crimes tipificados como feminicídio, sobram 1046 mortes de mulheres que ocorreram em outras circunstâncias que não as do feminicídio, nos últimos quatro anos.
A SSP/SC se manifestou por meio da assessoria de imprensa e informou que os dados contidos no item “homicídio doloso – violência doméstica” contabilizam todos os crimes identificados como feminicídio pela polícia, mesmo os que não ocorreram em contexto de violência doméstica. A nomenclatura só não foi atualizada por conta dos dados de anos anteriores à criação da lei (2015).
Observatório da violência não saiu do papel em SC
Em maio de 2015 foi sancionada a lei 16.620, que instituiu o Observatório da Violência Contra a Mulher. A finalidade foi justamente ordenar e analisar os dados sobre esse tipo de violência no Estado, além de promover integração entre os órgãos que prestam atendimento às vítimas. O governador à época, Raimundo Colombo (PSD), chegou a vetar o Projeto de Lei, mas a Assembleia Legislativa derrubou o veto e aprovou o PL – uma conquista da bancada feminina e de órgãos ligados ao tema.
Quase quatro anos depois, nada aconteceu. As determinações da lei nunca foram implementadas pelo Estado. Agora, a atual coordenadora Estadual da Mulher, Aretusa Larroyd, promete incluir o Observatório no Pacto Estadual Lei Maria da Penha, cujo objetivo é unir e pôr em prática todos os decretos e portarias referentes ao enfrentamento da violência contra a mulher.
“Tenho certeza de que vamos conseguir mensurar melhor a violência (com a implantação do pacto) e a sociedade poderá perceber que sim, o feminicídio existe, e vem ao encontro da questão cultural do nosso Estado”, garantiu Larroyd.
Após cárcere privado, o medo de morrer a persegue
Nnu Ego* conheceu o ex-marido aos 31 anos, em uma festa de casamento em Santa Catarina. Os dois se apaixonaram e logo iniciaram uma história de amor que foi acompanhada de abuso e violência. “Se soubesse que ele já respondia a dois processos por violência doméstica, eu jamais teria me envolvido com ele. Mas as informações são sigilosas, como poderia saber?”, lamenta.
Durante o namoro, Nnaife*, que é alguns anos mais velho, já dava sinais de abuso, mas à época não eram perceptíveis a ela. O ciúmes doentio era mascarado pelo brilho do amor. As perseguições no trabalho, na universidade, ou em momentos de lazer eram romantizadas pelo fator “surpresa”.
“Ele era muito ardiloso, tinha um bom papo e eu fui me envolvendo. Ele era super romântico, mandava flores, cartas e ia me buscar no trabalho. Eu achava isso lindo”, contou Nnu Ego.
O nervosismo dele e as brigas decorrentes de ciúmes passaram e ser recorrentes na fase do namoro, o que a levou a romper o relacionamento. Poucos meses depois, Nnaife a procurou com promessas que remetiam aos contos de fadas. Em pouco tempo, comprou alianças e a pediu em casamento. Apenas dois meses após o matrimônio ter se concretizado, as atitudes dele passaram a ser ainda mais agressivas, e a vida de Nnu Ego se tornou o que ela classificou como “inferno”.
“Lembro de acordar uma noite com ele vasculhando minhas gavetas em busca de alguma coisa. Regulava a minha roupa, não me deixava sair e pensava que eu o estava traindo. Passei a ser vagabunda na cabeça dele todos os dias”, relatou.
Até os romances que Nnu Ego teve antes de conhecer Nnaife tornaram-se justificativa para novas discussões. Embora tivesse vontade de separar, Nnu Ego tinha vergonha, não sabia como faria o comunicado à família. Por isso, tentou levar o casamento adiante com a esperança de que alguma mudança ocorresse.
A violência passou a fazer parte da vida dela e a privação de liberdade também. Nnaife chegava a esconder as chaves da casa e do carro para impedi-la de sair. Nnu Ego queria a separação, mas era confrontada com ameaças patrimoniais e de morte.
“Ele me dizia assim: ‘Você quer o divórcio? Vamos ver se eu vou assinar. Se você sair de casa vai configurar abandono de lar, sabia? E você vai perder tudo, não terá direito a nada”, contou ela.
A gota d’água foi quando Nnu Ego retornou de uma viagem com a família dela. Nnaife, tomado pelo ciúme, vasculhou a bolsa em busca de alguma pista de traição. Não encontrou. Mas não bastou. Escondeu a chave do carro. Naquele dia, ela foi trabalhar preocupada. Colegas sugeriram que ela saísse de casa. “Foi o que fiz. Cheguei em casa e disse que ia embora, mas ele me trancou no quarto e desligou a chave-geral da energia”.
Nnu Ego ficou cerca de quatro horas trancada num quarto sem poder ir ao banheiro, ouvindo os xingamentos do marido e as ameaças de morte. Apavorada, acionou a Polícia Militar e foi resgatada. “Quando eu vi o giroflex da viatura fiquei sem saber o que fazer, pois tinha medo que ele entrasse no quarto. Mas gritei pela fresta da janela e avisei que estava ali”.
Nnaife foi preso em flagrante por cárcere privado. Mas foi solto 12h depois em uma audiência de custódia. Nnu Ego está sob a guarda de uma medida protetiva até hoje, pelo menos no papel. Quase dois anos se passaram e Nnaife sequer foi ouvido no processo ao qual responde por seis crimes no contexto de violência doméstica. O divórcio também está emperrado na Justiça, pois ele não aceitou acordo e tramita como processo litigioso.
Nos últimos quatro anos, a Justiça de SC recebeu 28.042 pedidos de medida protetiva, entre eles o de Nnu Ego, o que representa quase 20 pedidos por dia. De 2015 para 2018, o número de solicitações cresceu 27,5%. Os municípios que registraram a maior quantidade de pedidos foram Chapecó (1769), Lages (1742), Florianópolis (1158) e Itajaí (1128).
“Espero que o crime não prescreva, mas tem apenas um juiz para julgar todos os casos de violência doméstica na comarca. Além disso, depois de tudo o que passei, ainda tenho que assinar meus documentos como se fosse casada com ele”, lamentou a vítima.
Nnu Ego também não tem acesso aos bens, pois depende do desdobramento judicial do divórcio. Ela não tem rede social e prefere ocultar o endereço para se proteger. Enquanto Nnaife segue sua vida livre, Nnu Ego se esconde e vive sob constante vigilância dos próprios passos.
“Eu já botei na minha cabeça que eu tenho que fazer as coisas por mim mesma e não depender da Justiça. A medida protetiva funciona por um tempo, o problema é que os processos demoram muito, a minha está parada há dois anos”.
Nnu Ego gostaria que houvesse um banco de dados com os nomes dos agressores para prevenir as mulheres. Se pudesse dar um conselho a outras vítimas, diria para elas não retomarem o relacionamento após identificarem sinais de abuso e agressão.
“Se elas conseguirem romper o relacionamento uma vez, devem persistir. Porque eles reatam o relacionamento com mais raiva. É um ciclo que começa com a agressão, depois vem o rompimento, o pedido de perdão com declarações de amor e, quando nada funciona, vem a vingança que ocorre de forma física, psicológica e patrimonial”, concluiu.
De acordo com a advogada Tammy Fortunato, que atua na defesa de mulheres, a demora no desdobramento do processo depende da cada comarca. A profissional destaca que nem todas contam com uma vara especial para a violência doméstica, o que gera alta demanda para os gabinetes.
Embora o processo seja demorado, o pedido de medida protetiva não está vinculado ao inquérito e pode ser solicitado a qualquer momento à polícia, ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário.
*A vítima e o agressor tiveram as identidades preservadas por segurança. Os nomes fictícios foram escolhidos com base em personagens da obra As Alegrias da Maternidade de Buchi Emecheta. A história se passa na Nigéria e é uma crítica à sociedade machista e patriarcal a qual as mulheres são submetidas.
Confira mais informações sobre violência e denúncia divulgadas em cartilha do Ministério Público de Santa Catarina:
O que caracteriza violência contra a mulher
Física: Quando faz uso da força para ferir como cortes, queimaduras, empurrões, socos e tapas.
Psicológica: Quando existe rejeição, desrespeito, humilhação ou intimidação.
Sexual: Quando se obriga a pessoa a presenciar ou participar de atos de natureza sexual sem consentimento.
Moral: Quando são feitas ameaças, acusações e xingamentos.
Patrimonial: Quando há destruição ou dano aos pertences e a casa da mulher.
O que fazer
Procurar uma delegacia, de preferência especializada, para fazer o registro da ocorrência. Medidas protetivas podem ser solicitadas nas delegacias, no Ministério Público, na Defensoria Pública ou na vara judicial que atende os casos de violência doméstica.
Encaminhamentos previstos pela Lei Maria da Penha
- Solicitação de medida protetiva protetiva.
- Exame de corpo de delito e outras perícias.
- Encaminhamento para abrigo em caso de situação de risco.
- Acompanhamento de policiais até em casa para a retirada de pertences.
- Condução da vítima até o hospital se estiver lesionada.
- Atendimento psicológico num centro de referência para resgatar autoestima.
- Acolhimento assistencial por meio dos programas do governo.
Medida Protetiva
As medidas podem estabelecer o afastamento do agressor do lar; a proibição de contato ou aproximação com a vítima, familiares ou testemunhas; prestação de alimentos e proteção dos filhos.
No caso de descumprimento da medida, a vítima pode procurar novamente a delegacia, o Ministério Público ou a vara judicial para registrar nova queixa.
Pedidos de separação, divórcio, divisão de bens, pensão alimentícia ou guarda dos filhos devem ser realizadas na Vara da Família por meio de advogado ou por meio da Defensoria Pública.
O Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Cremv) oferece apoio emocional. Na Capital, o Cremv atende ao lado da Dpcami (6ª DP). Procure o centro de referência da sua cidade ou região.
Denúncia
Disque-denúncia: 180
Emergências: 190
Contatos em Florianópolis
6ª Dpcami: 3665-6528
Cramv: 3224-7373
Juizado da Violência doméstica e familiar: 3287-6500
34ª Promotoria de Justiça: 3251-5836
21ª Defensoria Pública: 3665-6370
Schirlei Alves; Edição: Beatriz Carrasco