Folha recolocou a mulher no papel de ‘rainha do lar’ ao decidir ouvir quem ‘produz’
(Folha de S.Paulo, 17/05/2020 – acesse no site de origem)
A pandemia tem evidenciado e acentuado desigualdades de todos os tipos, mas uma reportagem da Folha publicada na terça-feira (12) não se deu conta disso.
A matéria se propôs a relatar a rotina do trabalho remoto no direito, ouvindo profissionais que “se desdobram entre lives,
videoconferências e cuidados com a casa e os filhos para manter em dia o trabalho e o andamento dos processos”.
Para isso, ouviu um ministro de um tribunal superior, um juiz federal, um dos advogados mais ricos do Brasil e um procurador da República.
Segundo o texto, esses profissionais despacham em escritórios bem organizados em algum lugar da própria casa e conseguem, além de
desempenhar suas funções, fazer exercícios físicos, dedicar-se à leitura, ver séries e tomar muitas garrafas de vinho.
Que mulher teria tempo para isso? Não sabemos. A reportagem ouviu quatro homens, sendo que apenas um deles parece ter de lidar com filhos pequenos e cuidados com a casa.
É curioso que ainda pensemos muitas áreas a partir de faces tão masculinas, e é possível dizer que a mídia tenha muito a ver com isso, na medida em que contribui para construir esse imaginário.
Números da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) mostram que, do total de 1,2 milhão de advogados inscritos no órgão, a metade (49,7%) são mulheres.
Parte delas reagiu à matéria.
“A Folha acredita que o mundo do direito é masculino. Impressionante! Matéria que só mostra os homens do direito nos tempos da pandemia e deveria mostrar a sobrecarga que incide sobre as mulheres. Não adianta fazer uma matéria no Dia da Mulher e passar o ano reproduzindo as violações”, disse uma desembargadora.
“Além de não dizer a que veio, a matéria ignora a realidade efetiva do país. Não é possível que, em maio de 2020, um jornalista faça tal levantamento com profissionais unicamente masculinos, desconsiderando a proporção de mulheres que atuam e que têm a contribuir para as notícias sobre trabalho em casa”, disse outra leitora.
Em reação ao texto, 346 mulheres profissionais do direito assinaram um manifesto. O documento diz ser inadmissível que um jornal, com os princípios editoriais que movem a Folha, publique reportagem que desconsidere tanto a questão feminina quanto também a realidade econômica da maioria esmagadora dos operadores do direito no Brasil.
Ainda que a intenção fosse fazer uma matéria mais glamorosa, é óbvio que as mulheres poderiam ter sido ouvidas (ainda que a ideia pareça não se encaixar bem numa editoria de Poder). Há também exemplos de outros textos bem mais abrangentes.
No entanto, a perplexidade diante da reportagem vem não só da invisibilidade das mulheres nas páginas dos jornais de grande circulação (nos quais as fontes procuradas, principalmente em áreas como a política e a economia, ainda são sobretudo homens), mas também por não terem sido ouvidas num momento particular.
Em meio à pandemia, isoladas com suas famílias, essas mulheres se dão conta de que a apregoada independência feminina nas classes médias brasileiras baseia-se em um equilíbrio frágil, sustentado por um grupo extenso de trabalhadoras domésticas e babás.
Sem essas outras mulheres à disposição, o que emerge das relações familiares é a constatação de que, a despeito de certo sucesso profissional e financeiro, profissionais de diversas áreas voltam a ser responsáveis por providenciar o almoço, checar se o banheiro está limpo ou se o lixo precisa ser recolhido —ainda que uma ou outra tarefa acabe delegada aos homens. Sem falar no cuidado dos filhos.
Com a pandemia, essa mulher “emancipada” percebeu que não só voltou a ser a “rainha do lar” como se sentiu recolocada nesse papel pela Folha—que, para falar da rotina do home office, optou por ouvir quem “produz”.
A Folha tentou reverter o quadro publicando no dia seguinte uma matéria cujo enfoque eram as críticas recebidas no manifesto —um texto curto em que ninguém foi ouvido.
O repórter Wálter Nunes reconhece que as críticas são justas. “Eu não estabeleci como critério ouvir só homens, mas no final foi o que aconteceu. É importante encarar esse episódio como uma oportunidade de reflexão e aprendizado”, diz.
Num esforço talvez inédito entre os veículos de maior circulação, a Folha assumiu com o leitor um compromisso com a diversidade de vozes, criou uma editoria só para isso, mas ainda patina.
Nas últimas semanas, por exemplo, o jornal produziu uma matéria sobre corte de cabelo para homens esquecendo-se dos cabelos crespos, reduziu a diminuta lista de colunistas fora da “bolha” das classes médias e agora ignora as profissionais do direito.
Por não estar apartada da sociedade, a mídia reforça, muitas vezes de modo irrefletido, o imaginário machista, racista, homofóbico e elitista brasileiro. No esforço para virar esse jogo, vai ser preciso bem mais do que se dizer diverso.
Flavia Lima
Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. É ombudsman da Folha desde maio de 2019.