A tentativa de interromper a sua escalada política se justifica porque Marielle representou e ainda representa uma ameaça aos podres poderes aliados às máfias no Rio
(EL País, 14/03/2019 – acesse no site de origem)
Há 365 dias o afeto e a assertividade de Marielle Franco nos faz falta na política e na vida. “A vida é dura, querida”, dizia sempre que a realidade parecia surreal. “Vamos pra cima, negona”, era a principal frase para o incentivo quando algo parecia inalcançável. A rotina em seu gabinete mesclava abraços apertados e falas firmes da nossa mulher, negra, favelada e lésbica que exibia uma coroa dourada que iluminava todos a sua volta. Luz percebida por aqueles que investigam a sua execução sumária, tanto que classificaram como “Operação Lume” a ação que prendeu dois policiais acusados de terem apertado o gatilho contra a Marielle e Anderson Gomes. Eis o feminicídio político que o Estado Brasileiro marca em sua história de 130 anos de República.
A conceituação de feminicídio político parte da observação inquietante da nossa sociedade e o contexto sobre o qual ocorre a execução sumária de uma mulher com carreira ascendente na política. Marielle foi eleita por 46.502 pessoas que compreenderam que toda a sua luta contra as desigualdades sociais, em especial as de gênero, raça e classe, é necessária para que a humanidade não se desumanize. Um recado também assimilado pelo mundo, que conheceu sua vida diante de sua morte. A tentativa de interromper a sua escalada política, ainda que não houvesse ameaças concretas, se justifica porque Marielle representou e ainda representa uma ameaça aos podres poderes aliados às máfias no Rio de Janeiro.
Marielle em vida e até na sua morte põe luz sobre os fatores que a tornam parte do hall dos seres matáveis, já que figura em seu corpo e sua pauta política, a mulher, a negra, a lésbica. Sendo assim, é possível incluí-la nas estatísticas do Atlas da Violência de 2018 que apontam o crescimento de 15% no número de feminicídios de mulheres negras, em apenas 10 anos. Sem dúvidas o machismo e o racismo são gatilhos letais. A Mari por vezes denunciou que essas mortes também podem ser creditadas ao Estado por sua negligência e omissão diante da inércia em aplicar políticas públicas que preservem a vida das mulheres.
Ao por luz sobre a falta ou a ineficácia de políticas que pudessem resguardar a vida das mulheres, seus direitos profissionais, reprodutivos e sexuais, Marielle faz um chamado para que as mulheres ocupem a política institucional. O enfrentamento ao patriarcado que impõe a submissão de mulheres aos homens, e considera a desigualdade social tão natural como um rio seguir seu curso, foi uma das bandeiras defendidas por Marielle. Por isso, não queria estar sozinha no Parlamento, esse espaço historicamente dominado pelos homens brancos detentores do poder político e econômico.
Nós, mulheres negras, atendemos ao seu chamado e superamos o pragmatismo político. Um pragmatismo que nos dizia: “Vocês, mulheres negras, são todas iguais. Inclusive vão disputar o mesmo voto porque são eleitas pela pauta identitária que não se sustenta”. O pragmatismo político é por essência racista, machista e classista, porque não reconhece que somos diversas, e não dispersas. Só no Rio de Janeiro fomos eleitas Talíria Petrone, para deputada federal, e Mônica Francisco, Dani Monteiro e eu para deputada estadual. Fomos pra cima, Negona.
Mas por que Marielle Franco incomodava tanto? Porque sua luz ofuscou a Casa Grande no parlamento. Vemos isso acontecer no ambiente de trabalho, na academia, por exemplo, quando nos destacamos no mestrado, doutorado e pós-doutorado e olham para o nosso rosto achando que não deveríamos estar na universidade. Mulheres negras são vistas com estranheza nos espaços de poder, e isso tem nome: machismo, racismo.
A nossa luta é para que as mulheres ocupem os espaços que elas quiserem, seja na cozinha fazendo comida, seja na universidade sendo uma doutora, seja no parlamento, que historicamente foi reservado ao homem branco. Justamente por isso apresentamos uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) com o objetivo de reservar 50% das vagas do parlamento estadual às mulheres. Ou temos equidade de gênero ou não vamos conseguir ultrapassar as barreiras dessas políticas públicas feitas, muitas vezes, para cercear a nossa liberdade, principalmente a sexual e reprodutiva.
O Estado, por exemplo, é negligente quando naturaliza a violência obstétrica. Por isso, presidirei a Comissão Parlamentar de Inquérito do Hospital da Mulher de Cabo Frio. Em uma semana, vieram a óbito seis nascituros, ou seja, é muito possível que essa mulher perdeu o seu filho numa sequência de violência obstétrica que pode ter ocorrido antes, no pré-natal, durante e depois desse parto. É importante que estejamos nas Casas Legislativas para desnaturalizar os processos de violação.
Como presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, continuarei o trabalho desenvolvido por Marielle Franco quando coordenou esta Comissão, por cerca de 10 anos, quando Marcelo Freixo a presidiu. A ideia é ampliar o atendimento às vítimas de violência do Estado. Uma responsabilidade enorme diante de governos que estão apostando na barbárie como método da política pública e o ódio como ferramenta de Estado.
O feminicídio político que vitimou Marielle precisa ser investigado como tal. Há a tentativa discursiva de concluí-lo como crime de ódio porque seu algoz afirmou que matou a Marielle por “repulsa”. Ora, parte da investigação levou 363 dias para chegar aos assassinos, tanta demora foi justificada por ser um crime praticado por profissionais e suas estratégias foram extremamente especializadas. É prematuro demais concluir que não houve um mandante, quando os assassinos são especialistas e já praticavam crimes sob encomendas. As investigações precisam continuar. Exigimos saber quem mandou matar a Marielle e quais as motivações. Seguiremos assertivos como Marielle na exigência para que o Estado Brasileiro dê uma resposta concreta. O feminicídio político de Marielle fragiliza a democracia.
Renata Souza, 36 anos, é deputada estadual pelo PSOL no Rio de Janeiro e foi chefe de gabinete da vereadora Marielle Franco.