Especialistas falam sobre ciclo da violência e os danos que acarreta na vida das mulheres
(Agência Patrícia Galvão, 10/12/2018)
Centenas de mulheres sofrem agressões todos os dias no Brasil. Segundo levantamento do 12º Anuário de Segurança Pública, 221.238 casos de violência doméstica foram registrados nas delegacias de todo o país em 2017, o que representa uma média de 606 registros de lesão corporal dolosa por dia enquadrados na Lei Maria da Penha.
Para compreender esse fenômeno é preciso entender também o que é e como funciona o ciclo da violência. O termo foi criado pela psicóloga norte-americana Lenore Walker em 1979 e passou a ser usado para identificar padrões abusivos em uma relação afetiva.
Segundo Walker, o ciclo da violência divide-se em três fases: aumento de tensão, ataque violento e a calmaria ou “lua de mel”.
Em resumo, a mulher que vive o ciclo da violência enfrenta momentos de agressividade do parceiro, caracterizados por ofensas verbais, controle e críticas, seguidos de agressões físicas, como tapas, socos e empurrões, até a chegada da fase da calmaria, em que o agressor pede desculpas, implora por perdão e promete que aquilo não irá se repetir.
“O primeiro investimento que a mulher faz na relação é esse investimento maciço na confiança, no afeto, é por isso que ela constrói uma parceria.”
Lenira da Silveira, psicóloga da Casa Eliane de Grammont
A mulher vítima de violência pode ficar presa nesse ciclo durante anos até tomar consciência de sua situação. A psicóloga Lenira da Silveira, especializada no atendimento a mulheres vítimas de violência, explica que a mulher acredita que o agressor pode mudar porque ela quer acreditar que o investimento que ela fez naquela relação não será em vão.
“Nenhuma mulher escolhe o ‘pior companheiro’. Elas escolhem aquele parceiro com o qual imaginam que vão construir uma vida. O fato de esse companheiro não ser uma pessoa má o tempo todo faz com que ela acredite que o comportamento agressivo pode mudar. O que vai acontecendo na violência doméstica é que o parceiro agressor vai usando esse investimento contra a própria mulher, ele vai jogando com esse afeto, buscando obter o controle. Ele faz aquilo que chamamos de ‘morde e assopra’, o que causa um sentimento de confusão nas mulheres, de dependência, de não saber mais se a culpa é dela, se é ela que está provocando, se ela fez alguma coisa errada. Esse é o terreno propício para se instalar o ciclo da violência.”, alerta a psicóloga.
A defensora Paula Sant’Anna Machado de Souza, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção de Defesa dos Direitos da Mulher (NUDEM) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, explica também que “essa percepção da violência perpassa um reconhecimento de si mesma enquanto sujeito de direito e dos papéis que a via jurídica pode representar. Por isso, muitas vezes, as mulheres demoram a procurar ajuda. Ou essa procura ocorre quando a violência atinge os/as filhos/as de maneira direta. A percepção de que isso não é normal – que são ciclos de violência e não de afeto – perpassa uma série de fatores”.
Os danos psicológicos da violência
A psicóloga Lenira comenta que a situação de violência doméstica é muito danosa para a vítima porque existe o componente da violência psicológica e as consequências de passar por uma situação como essa podem ser irreversíveis. A vítima pode muitas vezes não se recuperar completamente desse trauma.
“A mulher carrega uma ferida para o resto da vida. Muitas vezes tem dificuldade em estabelecer novas relações, de confiar em si mesma. É preciso realizar um trabalho intenso para que elas possam superar essas situações. É a perda da confiança até no próprio senso de julgamento, por não ter percebido, não ter se dado conta da violência.”
O caminho apontado pela psicóloga é mostrar para a mulher vítima de violência que a situação por ela enfrentada não é individual e sim um problema que parte de uma estrutura social desigual.
Ouvir as demandas e informar sobre direitos
As duas especialistas entrevistadas apontam que, tanto nos serviços de acolhimento quando na Defensoria, existe um cuidado grande para realizar um atendimento interseccional.
A Casa Eliane de Grammont, por exemplo, um dos maiores centros de referência e atendimento de mulheres vítimas de São Paulo, trabalha em parceria com a Defensoria do Estado para garantir que as mulheres encontrem nesses serviços uma rede articulada de atendimento.
Lenira das Silveira explica que os procedimentos nos serviços de acolhimento podem variar de acordo com o que a vítima está buscando no momento em que procura ajuda.
“Às vezes, quando chegam até nós, elas já deram o primeiro passo, foram à delegacia, mas ainda não viram todas as questões relacionadas à solicitação de medida protetiva, reparação, guarda dos filhos. Então encaminhamos para o atendimento jurídico”.
Para a psicóloga Lenira é fundamental que a vítima se aproprie e tenha conhecimento sobre seus direitos logo nos primeiros momentos de atendimento, antes mesmo de dar início ao tratamento médico psicológico. “Às vezes o agressor já está com pedido de guarda do filho, já está tomando providências para fazer alegações falsas; então, essa questão legal é uma grande preocupação em um primeiro momento. Não é a principal, mas é uma das mais evidentes.”
Na Defensoria, Paula Souza explica que o atendimento é principalmente em termos de cuidado intersetorial, articulado com as instituições e a política pública. Assim, quando um caso chega na Defensoria, em geral é encaminhado para o atendimento individual e para serviços que possuam também atendimento psicológico, que possam oferecer uma estrutura maior de amparo.
“Existe ainda uma visão muito grande do Direito atuando somente como via de punição ao agressor, e as mulheres não querem necessariamente esse caminho. Então é nosso papel ilustrar como a Lei Maria da Penha funciona, explicar que existem serviços, equipamentos da política pública, quais são os resultados que podem vir do Judiciário, mostrar que não existe só a via do Direito Penal, mas que existem outros mecanismos para que ela se restabeleça fora da violência. É também importante mostrar que, seja qual for a via escolhida pela mulher, a Defensoria enquanto instituição vai estar do lado dela”, completa Paula Souza.
Por Tainah Fernandes