Por que “ciúme” ainda é tão usado para justificar crimes contra mulher?

12 de março, 2019

Um levantamento feito pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO), divulgado ontem (em 11 de março), informa que há mais de 67 mil processos em tramitação relacionados à Lei Maria da Penha. Dentre eles, a palavra “ciúme” foi usada 51.760 vezes em atos judiciais, despachos e sentenças. O relatório também aponta que, só nos primeiros dois meses de 2019, foram protocolados 2.858 pedidos de medida protetiva.

(Universa, 12/09/2019 – acesse no site de origem)

Em 2018, em São Paulo, o Ministério Público do Estado também lançou um “Raio-X do Feminicídio”. Das 364 denúncias de feminicídio protocoladas pelo MPSP entre março de 2016 e março de 2017, 30% delas tiveram como justificativa “ciúme, sentimento de posse ou machismo”.

“Até a publicação do Código Penal de 1940, considerava-se que agir no calor da emoção e da paixão eram justificativas suficientes para amparar um crime. Essas emoções seriam formas de defender a honra em casos de traição, por exemplo”, explica a advogada de família, especializada em feminicídio, Christiane Faturi Angelo Afonso, de São Paulo. “Mas o Artigo 28 do código atual, afirma que ‘não excluem a imputabilidade penal a emoção ou a paixão’. Agredir ou matar alguém por ciúme não é uma defesa da honra, e quando a vítima é mulher, o caso entra na definição de feminicídio, de atentar contra a vida de uma mulher por conta de seu gênero”.

A promotora de justiça e coordenadora do Núcleo de Gênero do MPSP, Valéria Scarance, explica que, na jurisprudência, ciúme significa sentimento de posse de uma pessoa sobre a outra — na maioria das vezes, do homem sobre a mulher.

Ela afirma que o ciúme ainda é usado como “explicação” em casos de violência doméstica e feminicídio por causa do machismo reinante na sociedade. “Ao longo do tempo se ensinou que a mulher deve ser do lar, destinada aos filhos, obediente ao homem. A raiz disso está no sentimento de que ela é propriedade dele. Tanto é assim, que a ameaca mais comum ouvida em casos assim é ‘se ela não for minha, não será de mais ninguém’. O homem agressor desconsidera a mulher como uma pessoa, e prefere vê-la morta do que com outro”, afirma a especialista.

Valéria Scarance explica que a melhor forma de cortar o ciclo de abusos e de impedir que eles aconteçam é a mulher mantendo “suas bases de sustentação: não permitir que um relacionamento afete suas relações com a família, com os amigos, sua autonomia e também a autoestima”.

Atitudes criminosas motivadas por “ciúme”

Thaís Perico, advogada membro da Rede Feminista de Juristas e cofundadora da ONG Hella, de combate à violência contra a mulher, cita algumas atitudes motivadas pelo sentimento de posse que podem ser enquadradas criminalmente:

Perseguição/Stalking

“A perseguição pode ser incluída em crime de ameaça. Por exemplo, o homem não aceita o fim da relação, sabe os lugares que a ex-mulher frequenta, e começa a aparecer nesses lugares. Ela começa a pensar ‘ele abandonou a vida dele para ir atras de mim;do que mais ele é capaz?’, diz. Perseguir alguém, segundo a advogada, configura crime de ameaça do direito da mulher de ir e vir;

Ela incentiva que as vítimas coletem todas as provas dessa perseguição, por exemplo, tirando fotos do stalker, para que seja mais fácil a obtenção de alguma medida protetiva. “Para quem tem medida protetiva, em caso de descumprimento, deve haver prisão preventiva”.

Clonagem de WhatsApp

Recentemente, surgiram diversos aplicativos que clonam nossas conversas de WhatsApp. Eles são bastante utilizados pelo par de um relacionamento que quer monitorar a vida do outro. “A legislação brasileira ainda está engatinhando quando se fala de crimes virtuais. Mas em situações de clonagem das conversas, a mulher pode denunciar o parceiro na Delegacia de Crimes Cibernéticos de seu Estado, alegando o crime de invasão de privacidade”, aconselha Thaís Perico.

Obrigar o par a fornecer suas senhas de redes sociais e email

Há parceiros que monitoraram o outro por meio de email e redes sociais, depois de exigir que ele entregue suas senha. “Isso configura violência psicológica, crime contemplado pela Lei Maria da Penha no artigo 70, parágrafo II”.

Controlar gastos de cartão

Limitar o uso do cartão da vítima, barrar acesso ao próprio dinheiro e até mesmo impedila de trabalhar são atitudes também enquadradas na Lei Maria da Penha sob o o crime de violência patrimonial.

Controlar o contato da vítima com outras pessoas

Quando a mulher não pode entrar mais em contato, ou tem sua comunicação extremamente limitada, com familiares e amigos por causa de “ordens” do parceiro, este homem pode ser acusado, segundo Thaís Perico, de cárcere privado e violência psicológica.

Jacqueline Elise

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