Por que o Brasil precisa criminalizar a misoginia e convocar os homens para o combate, por Thaís Cremasco

09 de dezembro, 2025 Revista Fórum Por Thaís Cremasco

Pela primeira vez em muito tempo, assistimos a um chamado explícito para que eles ocupem o centro do combate, não como protagonistas salvadores, mas como corresponsáveis pela desconstrução de uma cultura que os beneficia, mas também os aprisiona.

O Brasil acordou neste domingo (7) com milhares de pessoas ocupando as ruas, numa convocação que não veio de partidos, nem de instituições, mas da exaustão coletiva diante de um país que segue enterrando mulheres enquanto se pergunta, com ironia cruel, por que os feminicídios não param de crescer. Essa mobilização espontânea é o termômetro de uma sociedade que chegou ao seu limite. Ela revela a percepção de que a violência contra mulheres não é um problema privado, um conflito doméstico ou um desentendimento entre partes conhecidas. É um projeto estrutural e contínuo, sustentado por uma cultura que naturaliza a desigualdade e pela recusa histórica do Estado em nomear seu inimigo: a misoginia. Esse cenário viola diretamente os compromissos constitucionais de proteção às mulheres previstos nos artigos 1º, III (dignidade da pessoa humana), 3º, IV (promoção do bem sem discriminações), e 5º, I (igualdade entre homens e mulheres), além das obrigações internacionais assumidas pelo Brasil na Convenção de Belém do Pará, que impõe o dever de prevenir, punir e erradicar a violência de gênero.

O dado é incontornável. Mais de 90% dos homicídios no Brasil são cometidos por homens. São eles que matam mulheres, são eles que matam outros homens e são eles que se matam. Quando olhamos para a violência letal, não estamos lidando com “a maldade humana”, mas com uma construção de masculinidade que educa meninos para o domínio, a força, a eliminação simbólica e concreta do outro, e que transforma a violência em linguagem, identidade e performance de poder. O feminicídio é o topo visível desse iceberg, mas toda a base é masculina. Criminalizar a misoginia não é punir opinião. É reconhecer que existe um motor cultural que alimenta a escalada da violência e que precisa ser enfrentado como política pública e como política criminal. Esse debate ganhou força com o PL 896/2023, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, que propõe a criminalização da misoginia por equiparação aos crimes de racismo, reforçando a compreensão de que a discriminação estrutural de gênero produz danos coletivos e demanda resposta estatal específica.

A criminalização da misoginia, já em debate no Congresso, não nasce de um impulso punitivista, mas de uma urgência civilizatória. Assim como o racismo, a misoginia opera como tecnologia de controle social. Ela estrutura imaginários, legitima desigualdades e conduz à violência física, psicológica e institucional. O direito penal, quando bem utilizado, tem a função de nomear injustiças históricas e sinalizar para a sociedade que certas condutas não são apenas moralmente condenáveis, mas intoleráveis enquanto pacto democrático. É exatamente essa a lógica que inspirou a Lei Maria da Penha, reconhecida pela ONU como uma das legislações mais poderosas do mundo no enfrentamento à violência contra a mulher, e que pune cinco formas de violência. O Estado brasileiro tem o dever jurídico de aprimorar mecanismos de proteção quando os existentes não são suficientes, conforme reiterado pelo STF ao validar a constitucionalidade da Lei Maria da Penha na ADI 4424 e na ADC 19, afirmando que a violência contra a mulher é uma violação de direitos humanos. Se não formos capazes de reconhecer juridicamente a misoginia, continuaremos tratando o feminicídio como um raio que cai do céu, e não como o resultado direto de uma hierarquia que beneficia homens e sacrifica mulheres.

É por isso que o movimento nas ruas também falou aos homens. Pela primeira vez em muito tempo, assistimos a um chamado explícito para que eles ocupem o centro do combate, não como protagonistas salvadores, mas como corresponsáveis pela desconstrução de uma cultura que os beneficia, mas também os aprisiona. Homens são as principais vítimas e autores da violência masculina, e permanecer em silêncio é uma forma de cumplicidade. Não haverá transformação real sem que eles enfrentem o modelo de masculinidade que lhes foi imposto, que se recusem a reproduzir padrões e que se coloquem como agentes da mudança dentro das suas comunidades, famílias e espaços de poder. O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ reforça justamente essa compreensão: a violência contra mulheres é produzida por estruturas e deve ser enfrentada com ações integradas, que envolvem responsabilização, educação, prevenção e participação masculina.

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