Aprovado em 2014, o Plano Nacional de Educação (PNE) prevê que 50% dos brasileiros de 0 a 3 anos de idade estejam matriculados em uma creche até 2024. Os dados mais recentes mostram que 32% da população nessa idade – 3,4 milhões de crianças – estava matriculada em creches em 2016, segundo o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas).
(HuffPost Brasil, 13/05/2019 – acesse no site de origem)
Para atingir a meta, seria necessário incluir mais 1,9 milhão de crianças.
Atingir esse cenário, contudo, é pouco provável na avaliação de especialistas em educação, devido à redução dos recursos federais para financiar as creches, além de políticas de diminuição da presença do Estado.
Entre as maiores cidades brasileiras, todas têm déficit de vagas, de acordo com dados das secretarias municipais de Educação enviados à reportagem. Em São Paulo, há 330.973 crianças entre 0 e 3 anos matriculadas e 19,6 mil na fila de espera, segundo levantamento de dezembro de 2018. Esse foi o patamar mais baixo atingido e representa 61% das crianças dessa faixa etária.
O problema, no entanto, não se resume às poucas vagas. Muitas vezes, a opção oferecida às famílias se torna inviável pela distância. A esteticista Priscila Hilário, de 29 anos, ainda não consegue conciliar a maternidade com o trabalho, já que a filha Alice, de 1 ano, não está matriculada em creche.
A secretaria de Educação chegou a oferecer a ela uma vaga em uma creche a que fica a mais de 1 hora de sua casa, no Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo. “Eles aceitaram ela em uma creche muito longe, sendo que tem uma a 10 minutos da minha casa. E o deslocamento é uma questão para mim”, disse Priscila ao HuffPost Brasil.
Agora ela entrou com pedido na Justiça para que seja concedida uma vaga em uma unidade mais próxima de sua casa. Em seu bairro, cerca de 661 crianças esperam por vagas.
“Eu não consigo trabalhar, não consigo fazer nada. Eu trabalho por conta. Então eu preciso que ela esteja na creche para conseguir trabalhar mais… Minha mãe me ajuda sempre, mas também precisa trabalhar”, desabafa.
Em Belo Horizonte (MG), são 35.122 matrículas de crianças entre 0 a 5 anos na rede da prefeitura e outras 40.351 de crianças de até 3 anos em creches parceiras. Estão na fila outras 3.500 crianças, sendo 1.478 crianças de berçário e 1.491 de 1 ano.
Para atender às famílias que não conseguem vagas, os governos municipais têm firmado parcerias pelas quais repassam recursos para instituições privadas. Alguns municípios também distribuem bolsas para famílias.
É o caso de Salvador. Em 2018, a capital da Bahia ofertou 40 mil vagas em creches, sendo 10,5 mil em instituições privadas parceiras. Já o programa Primeiro Passo, que consiste em um pagamento mensal às famílias, beneficia 26.950 crianças. Há previsão de garantir 10 mil vagas em 2019 na rede conveniada por meio do programa Pé na Escola, o que deve abarcar parte das crianças do Primeiro Passo.
No Rio de Janeiro, havia 644.644 crianças matriculadas em abril de 2019. A Secretaria Municipal de Educação não informou o déficit de vagas. De acordo com a pasta, neste ano foram registradas 79.231 solicitações de matrículas, mas o número de crianças pode ser menor, porque há casos de pais que fazem inscrições em mais de uma creche.
O direito a creche e a desigualdade
A legislação brasileira obriga a matrícula de crianças no ensino infantil a partir dos 4 anos. Entre 0 e 3 anos, está previsto o direito à creche, mas não há a obrigatoriedade de matricular a criança.
Hoje o perfil da família que cuida dos filhos em casa tem relação direta com fatores socioeconômicos. A renda média domiciliar per capita das famílias que adotam esse modelo era de R$ 550 em 2015, segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). O indicador subia para R$ 972 em famílias em que a criança vai para creche.
De acordo com a mesma pesquisa, havia 7,7 milhões de crianças de 0 a 4 anos fora da creche naquele ano (74,4% do total da população dessa idade). Nesse grupo, 4,7 milhões dos responsáveis (61,8% dentre os que estavam fora) queriam matriculá-las, sendo que 2,1 milhões (43,2%) tentaram uma vaga e não conseguiram — o que demonstra a incapacidade do poder público de suprir essa demanda.
A falta de creches atinge especialmente as classes mais baixas: Entre os 20% mais ricos, o acesso é de 48,2%, segundo a Pnad 2016, e de 22,3% entre os 20% mais pobres.
A falta de acesso a creche reforça a divisão social de famílias e crianças e o ciclo da pobreza. Essas mães não conseguem trabalhar porque têm de ficar cuidando do bebê, e isso empobrece ainda mais a família.
Beatriz Abuchaim, gerente de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal
“Esses dados são os que mais preocupam porque a falta de acesso a creche acaba reforçando uma divisão social dessas famílias e dessas crianças. Isso acaba reforçando o ciclo da pobreza”, observa a especialista em educação infantil Beatriz Abuchaim, gerente de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, responsável por ações para o desenvolvimento integral da criança.
“Essas mães não conseguem trabalhar porque têm de ficar cuidando do bebê e isso acaba empobrecendo ainda mais a família”, completa.
Em sua maioria, quem abre mão do trabalho para cuidar dos filhos quando não há vaga na rede pública é a mãe. Para 83,8% das crianças de até 4 anos, o primeiro responsável era uma mulher, de acordo com a Pnad. A sobrecarga dos cuidados infantis para as brasileiras resulta em salários mais baixos e maior índice de desemprego e subemprego.
Os números também revelam diferenças regionais. Enquanto o acesso a creche é de 24,6% para a população urbana, ela cai para 17,8% para a rural. A região Norte registra o pior indicador: 15,8%. É lá também onde estão os estados em situação mais precária nesse tema: Amapá e Amazonas, ambos com 12,8% de cobertura.
Em um barracão no Loteamento Amazonas, bairro pobre e sem saneamento na zona norte de Macapá, a pequena Vitória Veloso está prestes a completar 6 anos e nunca entrou em uma sala de aula. A menina mora com os pais e seus 8 irmãos.
A mãe de Vitória, Maria Edina Veloso, diz que, desde que mora na comunidade, há mais de 12 anos, nunca conseguiu vaga de creche ou escola infantil. O bairro tem mais de 4 mil moradores e conta somente com uma escola de ensino fundamental, que comporta cerca de 240 crianças a partir dos 6 anos.
“A única creche que tem aqui fica longe, é em outro bairro. Eu teria que pegar 3 ônibus e não tenho condição de pagar a passagem. Meus meninos mais velhos, por exemplo, gastam cerca de duas horas todos os dias só para ir estudar”, contou Maria Edina ao HuffPost.
Quando ela precisa sair para trabalhar, é comum levar Vitória e Pedro, de 3 anos, para o serviço — se a patroa aceitar a presença deles. Os cuidados dos pequenos também são compartilhados com a avó, Francisca Veloso, de 73 anos.
“Fica difícil levar para outro lugar. Aí é melhor ficar aqui em casa. Com aquela pequena eu ainda estou pelejando para ela aprender a assinar o nome. Eu que mostro os livros para eles, mesmo sem ler”, explica Francisca.
Ampliação do acesso à creche
Nos últimos 10 anos, houve um aumento significativo no acesso a creches. Apesar de os 32% registrados em 2016 estarem longe da meta do PNE, o percentual era de 19,6% em 2006.
Especialistas apontam como avanços o próprio debate sobre o tema e o fato de que a responsabilidade pela educação infantil passou da pasta de Assistência Social para a Educação a partir da criação do Fundeb, em 2007. É o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação que financia majoritariamente as creches no Brasil.
A dificuldade de gestão nos municípios, responsáveis pela oferta de creches, é apontada como um dos desafios. Para Victor Graça, diretor da Fundação Abrinq, a sociedade civil tem contribuído para pressionar o poder público. “Tem que ir pelo convencimento. Convencer os dirigentes de que é importante investir, que tem um trabalho para ser feito a longo prazo, ter o comprometimento do prefeitos. Dos 5.570 municípios, 2.300 se comprometeram com as crianças”, afirma.
O especialista diz que houve uma melhora no entendimento da importância dessa garantia e que é preciso reforçar as cobranças orçamentárias. “A fundação pede para o prefeito um compromisso com criança e adolescente, educação, saúde, proteção, pede um diagnóstico, um plano e para ele colocar no orçamento municipal que vai ser aprovado pela Câmara de Vereadores.”
Especialistas, no entanto, ressaltam que a expansão de vagas entre 2006 e 2016 não veio, necessariamente, com qualidade. Graça destaca dados do Inep mostrando que apenas 15,3% da creches têm sala de leitura, 39% não têm banheiros adequados, 41% não têm parque e 31,7% dos professores não têm nível superior.
Dinheiro para creches é insuficiente
O valor gasto para construir uma creche é equivalente ao valor de manutenção. “Se você gasta R$ 2 milhões, o que é a média, para fazer uma boa creche, vai ter de investir R$ 2 milhões todos os anos para manter essa creche”, afirma o coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara.
De acordo com o especialista, esse é um fator que levou ao abandono de obras do programa Proinfância. “Os prefeitos param a obra porque não têm como manter a creche. Preferem não inaugurar a creche”, afirmou à reportagem.
Criado no governo Lula e desenvolvido no governo Dilma Rousseff, o Proinfância é destinado à construção de creches e compra de equipamentos. Os municípios precisam cumprir determinados critérios para ter acesso aos recursos federais.
Relatório da CGU (Controladoria-Geral da União) divulgado em 2018 identificou baixa eficiência e falhas de planejamento no programa. Entre 2013 e 2016, do total de 8.824 obras previstas, 3.482 foram concluídas e 1.478 creches estavam em funcionamento. Havia ainda 1.297 obras inacabadas, paralisadas e canceladas, cujo prejuízo potencial supera R$ 800 milhões. Das 1.768 obras em execução, 86% estavam com baixa ou sem nenhuma evolução física havia pelo menos 3 meses.
Outro programa federal para facilitar o acesso a creches, o Brasil Carinhoso, por sua vez, sofreu redução de orçamento nos últimos anos. Os valores passaram de R$ 642 milhões em 2015 a R$ 6,5 milhões em 2018, segundo levantamento da Abrinq com base em dados do Ministério do Planejamento. Lançado no governo Dilma, o programa repassa recursos para crianças matriculadas em creches públicas ou conveniadas cujas famílias sejam beneficiárias do Bolsa Família.
O orçamento da educação infantil, de modo geral, também encolheu nos últimos anos. Passou de R$ 1,9 bilhão em 2014 para R$ 332,3 milhões em 2017, o equivalente a 17% do valor anterior, segundo estudo da pesquisadoraMarilane Teixeira, do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp.
Os recursos do Fundeb, principal fonte para as creches, tampouco são suficientes. O fundo é composto principalmente de contribuições dos estados e municípios. “O governo federal coloca no Fundeb 10% do que estados e municípios colocam”, afirma Carlos Eduardo Sanches, ex-presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação.
A estimativa de receitas do Fundeb para 2019 é de R$ 156,37 milhões, sendo R$ 143,46 milhões de estados e municípios e R$ 12,9 milhões da União.
Embora o governo federal arrecade mais dinheiro, a responsabilidade pelas creches é dos municípios, de acordo com a Constituição.
Para Sanches, o financiamento da educação ”é complexo e perverso”, porque o artigo 211 da Constituição determina que o estado tem de ofertar ensino médio e a prefeitura, a educação infantil – mas os dois juntos têm que ofertar ensino fundamental. “E o governo federal tem como responsabilidade cuidar da rede federal, [que representa] apenas 0,07% de todas matrículas de educação básica no Brasil. A imensa maioria [das matrículas] é das prefeituras: 52,5% em 2018”, detalha.
Devido a essa divisão, cabe ao governo federal apenas a responsabilidade suplementar e redistributiva quanto ao financiamento das creches. São transferências voluntárias da União em programas de transporte ou alimentação escolar, por exemplo, que representam uma pequena parcela do dinheiro.
O repasse do Fundeb para cada município depende do número de crianças matriculadas nas creches – e se o serviço é em tempo integral ou parcial ou na rede conveniada (veja no infográfico abaixo).
Os valores também são insuficientes, de acordo com análise da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Em 2018, a meta estabelecida pelo indicador Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) – montante considerado ideal – representava mais do que o dobro do valor mínimo repassado pelo Fundeb.
O futuro das políticas públicas de creches
O futuro do acesso à creche e a possibilidade de cumprir a meta do PNE podem estar na revisão do Fundeb. O fundo vence em 2020, e o Congresso Nacional precisará definir como será a composição do novo Fundeb. De acordo com a Abrinq, há propostas para aumentar o repasse para cerca de R$ 6 mil por aluno por ano.
Por outro lado, especialistas temem um esvaziamento do Estado, por meio do fortalecimento de políticas públicas de atendimento alternativo, que incluem incentivos financeiros para cuidados das crianças em casa pela família, em vez do acesso à creche, o que pode agravar desigualdades sociais e de gênero.
″É a combinação de creche para quem pode e atendimento alternativo. É claro que, para os mais pobres, fica o atendimento alternativo (…) É a ideia da mãe crecheira, que é péssimo para mulher, para a criança. Imagina uma mãe que fica 2, 3 anos fora do mercado de trabalho. Depois não volta mais. É uma proposta à qual somos totalmente contrários”, afirma Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
O especialista lembra que a inclusão das creches foi uma conquista na elaboração do Fundeb, uma vez que o projeto de lei original, do governo Lula, não previa essa etapa educacional no fundo.
Apoiado por alguns atores do setor privado, o atendimento alternativo ganhou força no governo de Michel Temer, com o programa Criança Feliz, tendo o então ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, como principal agente político. Hoje ele é titular da pasta de Cidadania do governo Bolsonaro.
Com a então primeira-dama, Marcela Temer, como madrinha, o programa consiste em ações voltadas a familiares que cuidam de crianças de até 3 anos, beneficiários do Bolsa Família, e de até 6 anos que recebem BPC (benefício de prestação continuada) ou que foram afastadas do lar por medida protetiva.