Taxa de interrupção voluntária da gravidez é menor em países que legalizaram a prática
(Folha de S.Paulo, 31/07/2018 – acesse no site de origem)
Um dos temas mais espinhosos na sociedade brasileira, a descriminalização do aborto volta à pauta do STF (Supremo Tribunal Federal) nesta semana. Em dois dias (3 e 6 de agosto) de audiências públicas, os ministros devem reunir informações e argumentos antes de julgar a ação da ONG Anis-Instituto de Bioética e do PSOL que pede que a interrupção da gravidez até a 12ª semana de gestação não seja mais criminalizada.
Serão 44 expositores, entre grupos ligados a igrejas, ONGs, universidades, sociedades médicas e o Ministério da Saúde. Embora o resultado disso tudo ainda seja uma incógnita, é a chance de o país ter um debate qualificado e honesto sobre o tema.
Em um habeas corpus julgado em novembro de 2016, a Primeira Turma do STF decidiu, por maioria de votos, que a criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação é inconstitucional. Conforme a decisão, a criminalização nesse período fere direitos sexuais e reprodutivos, o direito à autonomia, à integridade física e psíquica, bem como o direito à igualdade.
“A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis”, diz o acórdão do habeas corpus nº 124.306.
O argumento continua: “Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbito.” A decisão foi tomada pelos ministros Roberto Barroso, Edson Fachin e Rosa Weber (que será a relatora dessa ação que começa a ser discutida). Ela não obrigou outros magistrados a seguir o mesmo raciocínio em suas deliberações, mas passou a ser referência.
São esses os argumentos que a defensora pública Ana Rita Souza Prata, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria paulista, deve utilizar na audiência pública no STF na próxima segunda (6).
O núcleo é responsável pelo acompanhamento da defesa criminal de mulheres acusadas da prática de aborto. No ano passado, o órgão ajuizou habeas corpus em favor de 30 mulheres nessa situação, argumentando pela inconstitucionalidade do crime e pedindo o arquivamento dos processos criminais.
Além disso, a defensoria aponta que as mulheres penalizadas pela criminalização do aborto são as mais vulneráveis, pobres, com baixa escolaridade e moradoras de periferias, cujos casos vêm à tona após denúncias feitas por agentes de saúde, em violação ao sigilo exigido em suas profissões.
Recorrer à Suprema Corte para a descriminalização do aborto (e não ao Legislativo) foi um caminho bem-sucedido por pelo menos cinco países (Estados Unidos, Canadá, México, Nepal, Colômbia).
Nos EUA, por exemplo, o aborto no primeiro trimestre é legalizado em todo o território nacional desde 1973, com base nos direitos de liberdade e privacidade das mulheres garantidos na Constituição do país. Lá, o feto até esse estágio da gestação não é uma pessoa protegida pela lei.
Hoje já existe um corpo de evidências muito bem consolidado que mostra que a taxa geral de abortos é menor nos países onde eles são legalizados. E que leis restritivas estão associadas a altas taxas de abortos inseguros.
Estudo publicado ano passado na revista The Lancet apontou que no norte da Europa e na América do Norte, onde o aborto é descriminalizado, são as regiões com as menores taxas. Isso porque a descriminalização foi acompanhada por uma ampla estratégia de planejamento familiar e acesso à saúde.
Nesses países, há também menos riscos à mulher. Nove em cada dez interrupções são feitas de forma segura. Já na América do Sul, a realidade é oposta. Na região, apenas um a cada quatro abortos é seguro, ou seja, feito por pessoas treinadas e usando métodos recomendados pela OMS.
Reportagem da Folha mostrou que em uma década, o SUS gastou R$ 486 milhões com internações para tratar as complicações do aborto, sendo 75% deles provocados. De 2008 a 2017, 2,1 milhões de mulheres foram internadas. Ao menos 4.455 mulheres morreram nesse período.
Os dados devem ser apresentados pelo Ministério da Saúde na audiência pública. Já é esperado que uma das linhas de desqualificação dos contrários à descriminalização será dizer que o ministério está inflando as taxas de internações por aborto induzido.
Mas esse é um argumento facilmente rebatido porque todas as complicações e mortes por causas estigmatizantes ou criminalizadas, como o aborto, tendem a ser sub-registradas. Isso acontece no Brasil e no resto do mundo. Para corrigir essas distorções, há métodos amplamente publicados na literatura científica que ajustam esses dados. E isso já foi feito.
Há também uma pressão política para que o ministério substitua as técnicas que devem falar em nome da pasta. O gabinete do ministro recebeu um ofício da Rede Nacional em Defesa da Vida de Sergipe e Associação dos Parlamentares Evangélicos do Brasil pedindo a substituição sob o argumento de que as técnicas seriam “propensas pela pretensão do PSOL”. Indicaram no lugar um médico que entre outras coisas é diácono. Fim.
Cláudia Collucci