(Rede Brasil Atual, 20/09/2015) Projeto em tramitação na CCJ impede acesso das mulheres à pílula do dia seguinte e proíbe que profissionais de saúde as orientem quanto ao aborto legal
A prevenção de uma gravidez resultante de violência sexual pode se tornar inviável no país, se for aprovado o projeto substitutivo da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Federal para o Projeto de Lei 5.069, de 2013, de autoria do presidente da casa, deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ). O projeto altera a Lei 12.845, de 2013, que dispõe sobre atendimento a vítimas de violência sexual, excluindo o item que possibilita que a mulher receba contraceptivos de emergência para evitar uma gravidez em caso de estupro – a chamada profilaxia da gravidez.
A proposta original, do deputado Eduardo Cunha, somente previa punição para qualquer pessoa, inclusive profissionais de saúde, que fizessem anúncio de “processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto” ou que instruísse ou orientasse a gestante “sobre como praticar aborto, ou prestar-lhe qualquer auxílio para que o pratique, ainda que sob o pretexto de redução de danos”. Assim, proíbe médicos e outros profissionais de saúde de prestar qualquer orientação quanto às possibilidades de aborto legal.
Só com isso a proposta já afetaria a Lei 12.845, de 2013, que dispõe sobre atendimento a vítimas de violência sexual, sobretudo quanto ao “fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais e sobre todos os serviços sanitários disponíveis”.
Porém, o relatório elaborado pelo deputado Evandro Gussi (PV-SP), na CCJ, acrescentou outros dispositivos ao projeto de Cunha, praticamente inviabilizando o atendimento a mulheres vítimas de estupro que suspeitem ter engravidado. Isso por que a nova proposta retira do atendimento obrigatório a profilaxia da gravidez, que consiste na indicação da chamada pílula do dia seguinte.
O novo projeto também retoma as definições de violência sexual constantes do Código Penal de 1940 – que tem uma definição limitada quanto ao crime – excluindo o artigo 2º da Lei 12.845, que a define como “qualquer forma de atividade sexual não consentida”. E retoma a necessidade de exame de corpo de delito para comprovar a violência sexual, antes do atendimento.
O relatório de Gussi está em fase debate e pode ser votado nesta semana. Como se trata de lei penal, sendo aprovado o relatório na CCJ, o projeto vai direto ao plenário da Câmara. Em sua argumentação pela constitucionalidade da proposta, o deputado disse que o projeto “busca propiciar maior efetividade aos dispositivos já vigentes em nossa legislação pelo afastamento da prática do aborto, em consonância com a opinião da ampla maioria do nosso povo”.
A coordenadora-geral do movimento Católicas pelo Direito de Decidir, Maria José Rosado, considera o projeto “muito grave”. “Esse projeto não considera a vida das mulheres. É desrespeitoso à Constituição, que zela pela saúde de todos os seus cidadãos e cidadãs. E também de uma extrema injustiça social porque todas as pesquisas indicam que as maiores vítimas dos abortos clandestinos são as mulheres pobres e negras”.
Para ela o projeto representa um retrocesso imenso, ao colocar em dúvida a palavra das mulheres. “Quando uma mulher procura um serviço de saúde dizendo que foi estuprada ela deve ser imediatamente atendida e não julgada”, afirmou.
A contracepção de emergência é constantemente comparada à prática de aborto. O Ministério da Saúde já divulgou cartilhas explicativas em que nega essa possibilidade, esclarecendo que “não existe qualquer sustentação científica para afirmar ou fazer suspeitar que a anticoncepção de emergência seja método que resulte em aborto, nem mesmo em percentual pequeno de casos”.
“As pesquisas asseguram que os mecanismos de ação da anticoncepção de emergência evitam ou retardam a ovulação, ou impedem a migração sustentada dos espermatozoides. Não há encontro entre os gametas masculino e feminino. Assim sendo, não ocorre a fecundação”, explica o ministério na série Direitos Sexuais e Reprodutivos, voltada a profissionais de saúde.
No caso de uma gravidez já consolidada, a lei brasileira permite o aborto ainda no caso de estupro, em caso de risco de vida para a mãe e, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), em caso de feto anencéfalo – sem cérebro. Porém, nestes casos é preciso recorrer ao poder judiciário.
“Já há muitas dificuldades para a mulher conseguir atendimento nesse caso. A informação dos hospitais que realizam o aborto legal não consta em sites, por exemplo. Muitos médicos sofrem ameaças e constrangimentos por realizar o procedimento. Essa proposta tem grandes chances de inviabilizar de vez o processo”, avaliou a pesquisadora do núcleo de estudos de crime e pena da faculdade de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Maíra Cardoso Zapater.
Segundo ela, o crime de violência sexual compreende um constrangimento muito grave à vítima, que pode optar por não fazer a denúncia, devido à exposição que sofreria. “No entanto, em relação à possibilidade de gravidez isso não pode ser considerado. O que deve prevalecer é o atendimento à vítima”, afirmou.
Maíra teme também que a exigência de comprovação do estupro impeça o cumprimento da portaria do Ministério da Saúde que orientam a realização da profilaxia da gravidez, com uso de contraceptivos de emergência, em até 72 horas do ocorrido. “Com essa lei vai ser preciso apresentar provas do estupro, fazer exames comprobatórios. Isso pode fazer as mulheres deixarem de buscar o serviço legal e se arriscar em abortos clandestinos”, defendeu.
A lei atual é criticada por supostamente permitir que uma mulher minta sobre a violência sexual para conseguir o aborto legal. Para Maíra, este é um argumento falso. “Está prevista a punição para o caso de a mulher mentir. Mas é absurdo imaginar que alguém vai se arriscar a um procedimento médico e ser preso para conseguir um aborto legal. É mais fácil procurar uma clínica clandestina”, argumentou.
Rodrigo Gomes
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