(Folha de S.Paulo, 12/01/2016) Grávidas de fetos microcefálicos devem ter o direito de abortar? E mulheres que descobrem ter contraído zika no início da gestação? Pela letra da lei brasileira, não. As exceções previstas são só duas, perigo de vida para a mãe e gravidez resultante de estupro.
A decisão do STF de estender o direito de abortar a portadoras de fetos anencefálicos tampouco ajuda, já que o requisito são malformações incompatíveis com a vida extrauterina, algo que a microcefalia não é.
Ainda assim, o debate é válido. Se nos conformássemos com o que diz a lei, sem tentar modificá-la pela via legislativa, jurisprudencial ou mesmo por revoluções, as Ordenações Filipinas ainda estariam em vigor.
É interessante aqui notar que o legislador de 1940, responsável pelo atual Código Penal, teve a grande sabedoria de não definir absolutos. Não colocou a vida do feto como algo a preservar a todo custo, como fazem certas doutrinas religiosas. Não só estabeleceu a vida da mãe como hierarquicamente superior à do nascituro mas também criou uma cláusula de exclusão de punibilidade baseada em razões psicológicas.
O aborto nos casos de estupro, que a doutrina chama de aborto sentimental, tem como justificativa o fato de que seria desumano obrigar a mulher a carregar no ventre o filho do agressor. Ou seja, o bem-estar psicológico da mulher prevalece sobre a vida do embrião, ainda que apenas em situações especiais, em que a grávida foi forçada ao ato sexual.
Foi ampliando a noção de que a saúde psíquica das mulheres é um bem jurídico a preservar tão valioso quanto a promessa de vida que a esmagadora maioria dos países industrializados chegou à conclusão de que, ao menos nas fases iniciais da gestação, a mulher deve ser livre para decidir sobre a sua continuação.
É um pouco frustrante constatar que as premissas do debate, que hoje se trava em nome de absolutos religiosos, pioraram de 1940 para cá.
Acesse em pdf: Deu zika, por Hélio Schwartsman (Folha de S.Paulo, 12/01/2016)