(Folha de S. Paulo, 16/08/2016) Com uma epidemia da febre chikungunya em curso, o Brasil já concentra 88% dos casos confirmados da doença nas Américas, de acordo com a Organização Pan-americana de Saúde (Opas).
Transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, a chikungunya não tem cura, somente medicação para alívio da febre e das dores intensas –e muitas vezes incapacitantes, principalmente nas articulações de pés e mãos.
A preocupação dos especialistas é que a epidemia piore no verão e sobrecarregue ainda mais os serviços de saúde. Pelo menos 20% dos casos deixam sequelas crônicas, como artrites e artroses.
No primeiro semestre do ano, o número de casos notificados no país foi quase dez vezes superior ao de igual período de 2015 –170 mil, contra 17 mil. Já há 38 mortes, contra seis no ano passado todo, quando a epidemia de zika e o aumento no número de casos de microcefalia gerou o estabelecimento de emergência de saúde pública nacional.
A região Nordeste apresenta a maior taxa de incidência da febre chikungunya: 267,8 casos por 100 mil habitantes –contra 27,9 em 2015. No Sudeste, a incidência também disparou –de 0,2 casos por 100 mil para 11,5.
Os registros paulistas acompanham o aumento no resto do Brasil. Até o início de agosto, foram notificados 4.987 casos pela secretaria do Estado, 834 já confirmados. Em 2015 inteiro foram 1.505 notificações, com 189 confirmadas.
“Na maioria dos casos, os sintomas desaparecem em até seis meses, mas parte dos pacientes pode ficar com sequelas definitivas”, diz Boulos.
Isso significa que, além de acesso a especialistas, como reumatologistas, e a remédios de alto custo, essas pessoas vão precisar de reabilitação, como sessões de fisioterapia, outro grande gargalo no SUS. A espera por uma consulta com um reumatologista no SUS pode levar até dois anos.
“O país precisa se preparar rapidamente para lidar com as complicações a longo prazo. São artrites incapacitantes, que interferem no dia a dia, na vida profissional das pessoas”, diz o infectogista Artur Timerman, presidente da Sociedade Brasileira de Dengue e Arboviroses.
A auxiliar de enfermagem Marlúcia dos Santos, 37, de Feira de Santana (BA), retornou ao trabalho no mês passado, após dez meses afastada em razão das sequelas.
Ela toma três medicamentos de uso contínuo (dois analgésicos e um anti-inflamatório). “Melhorou um pouco, mas ainda sinto muitas câimbras, dores nas articulações e limitações no braço direito. Mesmo assim, estou feliz por conseguir ficar de cócoras, escovar os dentes e pentear o cabelo”, conta.
A ambulante Maria Lúcia Santos Silva, 41, da mesma cidade, completou um ano de dores e inflamações nas articulações, que limitam o seu trabalho. “Falta força nas mãos”, diz ela, que toma dois remédios de uso crônico.
Segundo o reumatologista Morton Sheinberg, a infecção pode não só causar quadro novo de artrite como reativar inflamações sob controle.
Para Artur Timerman, a explosão de chikungunya mostra que o vetor, o Aedes aegypti, está mais presente do que nunca no país. “Estamos enxugando gelo. A estratégia de combate domiciliar é inócua, e o mosquito está resistente aos inseticidas.”
Transmissão para o bebê
Ao menos três Estados do país (Bahia, Paraíba e Pernambuco) já registraram casos de transmissão da febre chikungunya da gestante para o bebê, mas a situação de epidemia nacional deve gerar novos números em breve.
Em Campina Grande (PB), há um caso confirmado e outros cinco sendo investigados, segundo a obstetra Adriana Melo, médica também responsável pela identificação do vírus da zika no líquido amniótico de dois fetos com microcefalia em 2015.
Ela afirma que faltam recursos para seguir com as investigações. “Coletamos o material, mas faltam kits sorológicos”, afirma.
Os bebês apresentaram sintomas da febre ckinungunya quatro dias após o nascimento. Ela diz que ainda não é possível saber se a transmissão ocorreu na hora do parto ou por meio do leite materno.
Um dos bebês apresentou fortes convulsões, resultado de meningite. “O vírus provoca problemas neurológicos, levando a esse tipo de reação”, afirma Adriana Melo.
Em Salvador (BA), houve dois casos relatados. As mães tiveram sintomas dois dias antes do parto. Segundo a pediatra Lícia Moreira, os bebês nasceram bem, mas, dias após o parto, apresentaram hemorragia e dificuldade para respirar. Um deles teve hemorragia intracraniana e digestiva, além de endocardite. Ficou 37 dias na UTI. O outro permaneceu 17 dias internado, sendo 14 na UTI.
No Recife, a Secretaria da Saúde da cidade notificou em julho as primeiras mortes de bebês (um feto e um recém-nascido) que teriam sido causadas pelo vírus chikungunya.
Estudos feitos na ilha Reunião, localizada no meio do Oceano Índico e que enfrentou epidemia de chikungunya em 2010 e 2014, mostram que as crianças infectadas pelo vírus têm mais chances de apresentar déficit neurocognitivo no futuro.
Em um desses estudos, publicado na revista científica “PLoS Neglected Tropical Diseases”, pesquisadores seguiram durante dois anos 33 crianças infectadas pelo vírus no parto e as compararam com 135 crianças que não tiveram o contágio.
Mesmo isolando variáveis, como idade gestacional ao nascer e ter sido ou não amamentadas no peito, após dois anos de seguimento, as crianças que tiveram chikungunya apresentaram três vezes mais chance de atraso no desenvolvimento neurocognitivos, como dificuldade de coordenação e linguagem.
O maior impacto do vírus parece ser no final da gravidez. O bebê nasce bem, mas depois de três, quatro dias, pode ter exantema [manchas vermelhas], choro forte, apresentar hemorragias e comprometimento neurológico.
Nesta terça (16), a Fiocruz realiza seminário para discutir o avanço da chikungunya no país e os desafios enfrentados pelos sistemas de saúde em meio à epidemia.