(Folha de S. Paulo, 16/01/2015) O governo brasileiro está determinado a diminuir o número de cesarianas feitas no país, que atualmente passa de 55% de todos partos. O índice é um dos mais altos do mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que apenas 15% dos partos sejam feitos por cirurgia. Na França, a taxa de 21% é uma das menores da Europa.
Países nórdicos como Noruega e Finlândia conseguem que apenas 17% dos partos sejam por cesárea. A ginecologista e obstetra Simone Perdigão Cotta, especialista em infertilidade que atua no Institut Mutualiste Montsouris, em Paris, conhece essa realidade de perto e explica como funciona.
Por que a França tem um dos níveis mais baixos de ocorrência de cesarianas?
Aqui, nós temos recomendações de boas práticas médicas, determinadas pelo Collège National des Gynécologues et Obstetriciens de France (Cngof). As indicações de realização de cesariana são muito mais restritas. A cesariana é feita apenas quando há indicação médica. As pacientes são informadas de que o risco de morbimortalidade dobra em uma cesariana, em relação ao parto normal. Eu acho que a informação faz toda a diferença. As pacientes participam da escolha de parto tendo todas as informações, mas a decisão é do médico. Às vezes, algumas solicitam uma cesariana por conveniência, quando elas não querem ter um parto normal. O médico tenta explicá-las que o parto normal a protege da morbimortalidade. Se houver muita insistência, um grupo médico avalia a situação – e pode recusar a cirurgia. Neste caso, a paciente pode procurar um outro serviço, que em geral é privado.
Com o parto normal, as vidas da mãe e do bebê são mais preservadas?
Sim, e esse é justamente um ponto que precisa ser esclarecido. A cesariana não protege da morbimortalidade neonatal. No Brasil, quando eu era residente, muitas vezes eu escutei das pacientes que queriam uma cesariana para proteger o bebê. Mas não é verdade, porque a cesariana acaba sendo feita antes mesmo da hora em que o bebê deveria nascer. Os riscos de uma cesariana ligados a hemorragia, infecção, embolia, trombose e complicações anestésicas são muito maiores do que em um parto normal. Sem contar que os riscos de insuficiência respiratória do bebê são menores com o parto normal, porque o bebê está realmente pronto para nascer. É claro que há indicações especificas para a realização da cesariana. Nenhum médico vai colocar nem a paciente, nem o bebê em risco.
Algumas brasileiras que fizeram parto na França, mas também francesas, se queixam que, às vezes, a recomendação pelo parto normal leva os médicos ao limite do trabalho de parto, que pode passar de vários dias. Algumas gestantes julgam que a espera pelo parto normal pode ser exagerada, ocasionando sofrimento das mães. Como você vê essa questão?
Eu não concordo. O médico tenta ir até onde é possível, no parto normal, mas sem colocar em risco a mãe ou o bebê. As expectativas da paciente nem sempre são vistas da mesma maneira pelo médico. A partir do sexto mês, a gestante tem acompanhamento em uma maternidade, onde fará o parto. Assim, conhecendo bem a equipe, ela se sente mais segura.
Outro ponto em que as diferenças em relação ao Brasil são claras é que, na França, o parto é feito por uma parteira, e não pelo obstetra.
Na França o parto normal fisiológico é feito por uma enfermeira obstétrica (sage-femme). Eu acho que isso ajuda muito a diminuir a taxa de cesarianas. No Brasil, o médico trabalha no consultório privado, nas clínicas, no hospital. É ele quem vai fazer o parto e a paciente quer que o médico esteja disponível para fazer o parto dela. Ela não quer o médico de plantão. Aqui na França, não é o médico da paciente quem faz o parto: é o plantonista, juntamente com a enfermeira obstétrica. O médico de plantão conhece o caso de todas as pacientes em trabalho de parto – elas são monitoradas com cardiotocografia, recebem anestesia peridural e o obstetra de plantão acompanha o trabalho de parto de cada uma delas. Se tudo estiver bem, o parto é feito pela sage-femme e ele só vai à sala de parto se julgar necessário, se ela ou o bebe apresentarem alguma complicação. O monitoramento materno-fetal é fundamental.
Você acha que o fato de, no Brasil, a figura da parteira estar tanto em segundo plano em relação ao médico obstetra é um dos fatores que explicam o alto índice de cesarianas?
O problema é que, no Brasil, a formação das parteiras não é a mesma que na França. Aqui, elas precisam fazer uma universidade de quatro anos, depois fazem estágios e só então começam a dar plantões de obstetrícia. E uma enfermeira obstétrica jovem, recém-formada, sempre estará acompanhada de outra mais experiente, além do médico. Ela nunca vai estar sozinha. Acho que isso dá confiança para a paciente. Eu não tenho conhecimento suficiente para julgar a formação das parteiras ou enfermeiras obstétricas no Brasil, mas eu espero que melhore cada vez mais, para que a gente possa ter o mesmo nível de eficiência que temos aqui na França.
Lúcia Müzel
Acesse o PDF: Obstetra explica por que a França tem baixo índice de cesáreas (Folha de S. Paulo, 16/01/2015)