(Observatório de Imprensa, 07/09/2014) Na era de séries televisivas de sucesso como House of Cards, a referência talvez soe anacrônica. Mas, em tempos de disputas eleitorais, seria muito útil assistir novamente – ou pela primeira vez, no caso dos mais jovens – a The Best Man, filme de 1964 dirigido por Franklin J. Schaffner, que expõe os bastidores da luta pela indicação de um candidato às eleições presidenciais americanas. Opõe um político que se poderia resumir como “ético” a outro que não tem qualquer escrúpulo.
(Dito assim, parece maniqueísta. Longe disso, ou o roteiro não seria assinado por Gore Vidal, autor da peça homônima na qual o filme se baseia: ambos os personagens têm contradições e vulnerabilidades, mas o que está em jogo é o respeito a princípios, a adesão ou a recusa à possibilidade de usar qualquer arma para vencer a qualquer preço. Daí, aliás, a impertinência da tradução do título para “Vassalos da ambição”).
A rigor, o filme se encaixaria mais precisamente no contexto de nossa primeira eleição direta para a Presidência após a ditadura, em 1989. Mas serve igualmente agora, diante do que assistimos neste recém-encerrado primeiro turno e do que está por vir na etapa final.
Agressões
Só neste Observatório, para não mencionar o que se publicou em jornais – por exemplo, as reiteradas manifestações de Janio de Freitas em sua coluna na Folha de S.Paulo –, foram vários os artigos que condenaram o “vale-tudo”. Num dos mais recentes (ver “O vale-tudo não acaba“), Alberto Dines anotou: “Com o pretexto de desconstruir o adversário mais ameaçador estabeleceu-se um modus matandi sem qualquer consideração de ordem moral”.
É possível que se insista nesta tática, a julgar pelo acirramento da disputa e pelo prazo exíguo até o momento de decisão. Nenhuma surpresa: apenas decepção pelo desperdício dessa oportunidade tão especial que qualquer campanha política potencialmente oferece para discutir as questões mais relevantes para a sociedade. Mesmo porque a política, esse substantivo abstrato, só consegue ter sua importância reconhecida quando ganha concretude, quando se demonstra como ela interfere na vida das pessoas comuns.
Uma questão urgente
Um dos temas mais importantes, sensíveis, polêmicos e concretos é o aborto, normalmente levantado como armadilha para candidatos que não podem afirmar com clareza o que pensam, sob pena de perder votos entre os setores mais conservadores. A tendência, nesses casos, é sair pela tangente, dizer que se trata de um assunto que precisa ser discutido pela sociedade etc.
No último debate antes do primeiro turno, a presidente Dilma Rousseff foi confrontada com esse tema pelo candidato do PV, Eduardo Jorge. Teria sido uma provocação? Provavelmente não: a morte recente de duas mulheres, uma no Rio, outra em Niterói, recolocou a questão em toda a sua densidade. Dilma, entretanto, preferiu esquivar-se e dizer que, por força do cargo, tinha de cumprir a lei.
Javert, o obstinado policial de Os Miseráveis, não conseguiu resolver o conflito entre o dever de cumprir estritamente a lei e o senso de justiça.
Discutir a lei
Leis existem para serem cumpridas mas, também, discutidas: que melhor oportunidade para isto, se não uma campanha eleitoral? Que melhor oportunidade para fazer avançar propostas que mexam com convicções cegas à tragédia do cotidiano?
Dizer-se a favor da descriminalização do aborto seria certamente um risco: em outras ocasiões, outras candidatas tiveram essa coragem e foram demonizadas por pastores evangélicos como “aborteiras”. Mas demonizadas seriam de toda forma: quem carrega um histórico à esquerda sempre levará a “pecha” de comunista, no velho estilo de comedor de criancinhas.
Sair pela tangente não é alternativa, especialmente para candidaturas progressistas; menos ainda quando a resposta sugere que as leis são imutáveis. Seria plenamente possível – mais que isso, seria absolutamente necessário – reconhecer a gravidade da questão e comprometer-se em incentivar a discussão do tema pelo Congresso Nacional. Inclusive acenando com o exemplo de outros países.
Há duas semanas O Globo teve a coragem de levantar esse debate, a partir do noticiário sobre a morte de Jandira dos Santos Cruz, que havia desaparecido depois de ir a uma clínica clandestina. Agora (6/10), volta à carga em editorial (ver aqui) que abre espaço para opinião contrária (aqui). Se continuar nessa linha e decidir investir nesse tema como investe nas denúncias contra a violência contra mulheres e homossexuais, talvez consiga ajudar a quebrar o preconceito que o envolve. E talvez esteja aí uma preciosa colaboração para que as campanhas eleitorais possam finalmente enfrentar esse debate.
Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
Acesse no site de origem: Sobre princípios, escrúpulos e temas polêmicos, por Sylvia Debossan Moretzsohn (Observatório de Imprensa, 07/10/2014)