(Revista Fórum, 30/01/2015) No país onde 52% dos nascimentos são realizados por meio de procedimentos cirúrgicos, mulheres submetidas a cesáreas indesejadas contam suas histórias de dor e superação
Por Anna Beatriz Anjos
É fato que o Brasil vive uma “epidemia das cesáreas”. Segundo a pesquisa “Nascer no Brasil”, coordenada pela Fiocruz e lançada em maio de 2014, cerca de 52% dos nascimentos ocorrem por cesáreas no país. Na rede privada de saúde, o índice chega a 88%. Os números estão muito acima das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que preconiza que apenas 15% dos partos sejam realizados por meio de procedimentos cirúrgicos (leia a reportagem completa aqui).
Há diversas histórias de mulheres que se prepararam e buscaram, a todo custo, um parto normal, mas não tiveram sua vontade respeitada. Alguns relatos são mais fortes e emocionados, outros, menos. Mas a questão é que são muitos. E, em grande parte das vezes, as protagonistas dessas experiências admitem terem se sentido sozinhas e desamparadas em um momento que deveria ser de felicidade e realização: a chegada de um filho.
Abaixo, você pode conhecer alguns desses casos, além das transformações que despertaram na vida de quem os viveu:
“Não me senti nem coadjuvante, me senti o cocô do cavalo do bandido”, Aline Amorim, de 26 anos, mãe de Pedro e Sarah (Rio de Janeiro – RJ)
“Na primeira gestação, eu fazia o pré-natal no SUS e, no final, meus pais acabaram pagando para que eu tivesse o acompanhamento de um obstetra particular. Quando entrei em trabalho de parto, ele [médico] falou que minha bacia era estreita e que eu precisaria fazer uma cesariana. Não tinha informação na época, não tinha nem acesso à internet, computador, nem nada. Falaram, na hora, que tinha que ser uma cesariana para salvar a minha vida e a do meu filho, mas, durante o pré-natal, me disseram que o parto poderia ser normal. Não tinha noção da realidade obstétrica brasileira, então, para mim, só se fazia uma cesariana quando era necessário, se a mãe ou o bebê estivessem morrendo. Não sabia que os médicos mentiam para as gestantes, ou que as pessoas escolhiam uma cesariana sem necessidade.
Depois, no final de 2009, fiquei grávida novamente, e pensei: ‘não vou fazer outra cesariana, vou fazer um plano de saúde para poder escolher o médico e ter o parto do jeito que quero’. Nessa época, já tinha informações e participava de alguns grupos. Fui ao médico, que era supostamente ‘humanizado’, contei que já havia tido uma cesariana, e ele disse que isso não era impeditivo de um parto normal. Continuei fazendo pré-natal com ele, mas em toda consulta, ele fazia exame de toque, e fazia ultrassom quando bem entendia também. Cheguei a fazer o plano de parto, levei para ele, que disse que, a princípio, não precisava ler, e pediu para que eu fosse contando a ele o que havia escolhido. Eu falei, e ele disse que concordava, que o que eu tinha dito eram as suas práticas normais, costumeiras. No final, com 39 semanas, liguei para ele e disse que estava com contrações, e ele me falou para ir à maternidade. Quando cheguei lá, só fez exame de toque e me disse que não seria possível o parto normal, porque a minha filha poderia estar em sofrimento fetal, mas ele nem auscultou os batimentos dela para dizer isso. Na hora, estavam comigo minha mãe, minha sogra, meu marido na época, e todo mundo falou que era aquilo mesmo, e ainda disseram que eu estava querendo matar a minha filha. Não tive coragem de contestá-lo, até porque não tinha o que fazer naquele momento, não conhecia nenhum outro médico que fazia [parto normal]. Me vi realmente de mãos atadas e subi para o centro cirúrgico chorando. Fiz a cesariana chorando. Teve uma hora em que ele [médico] me perguntou: ‘nossa, não sei porque você está chorando tanto, parece até que é sua primeira cesariana’. Minha filha passou por todos os procedimentos desnecessários que fazem de rotina com o recém-nascido e foi para o berçário. Ela ainda nasceu pequena para a idade gestacional, então, provavelmente, nasceu antes do tempo.
Me senti péssima. No fundo, eu sabia que não era necessário, que ele estava me enganando, mas não via uma saída para fugir daquilo ali. Não me senti nem coadjuvante, me senti o cocô do cavalo do bandido. Depois da segunda gestação, decidi me formar doula para poder ajudar outras mulheres a não passarem pelo que passei.”
“Dói a cicatriz até hoje, não no corpo, mas a que ficou na alma”, Larissa Vallim de Aquino, de 22 anos, mãe de Karina e Pedro (São Paulo – SP)
“Em 2001, engravidei, não foi planejado. Estava sem obstetra fixo. A família do meu marido, super tradicional, me indicou o obstetra de confiança. A gestação foi tranquila, desde o início do pré-natal ele [médico] sabia do meu desejo pelo parto normal e dizia ‘se tudo correr bem…’. Ou então ‘vamos falar disso mais pra frente…’. Com 38 semanas, ele resolveu marcar minha cesariana por falta de dilatação. Eu questionei sobre esperar o trabalho de parto, mas ele iria sair de férias na semana seguinte e disse que eu ficaria na mão do plantonista. Fiquei com raiva por não ter contado antes, que sairia de férias antes da minha data provável de parto. Questionei sobre esperar até 42 semanas. Ele disse que ELE não esperava, era arriscado. Solicitei indução, pelo menos… Ele disse, de novo, que seria muito arriscado, dolorido e que quase nunca dava resultados. Saí do consultório chorando naquela quinta-feira. Torcendo para entrar em trabalho de parto no final de semana, pois a cesariana estava marcada para segunda-feira (dias antes da minha data provável de parto). Foi horrível. Meu marido filmou. Não consigo assistir sem chorar, mal consigo ver. Doeu muito. Doeu o pós-operatório, doeu não ser respeitada, dói a cicatriz até hoje, não no corpo, mas a que ficou na alma. O luto do parto roubado.”
“Por dentro eu só pensava: ‘o que estou fazendo aqui?’”, Débora de Oliveira Marcondes, de 35 anos, mãe de Levy (Mogi Guaçu – SP)
“Hoje sou enfermeira obstetra e meu filho nasceu há 5 anos. Morava em Brasília, fiz pré-natal com uma obstetra do plano que, lógico, me disse durante os nove meses que seria normal se corresse tudo bem. Eu já era enfermeira há 5 anos e me informei muito durante a gravidez, participava de grupos no Orkut, e mesmo assim caí numa ‘desnecessária’ quando completei 41 semanas, por ‘falta de dilatação, bebê podia entrar em sofrimento a qualquer momento, a placenta podia envelhecer de repente, se entrasse em trabalho de parto no meio da semana poderia não ter vaga no hospital que escolhi’ etc. Enfim, caí na faca com 41 semanas e depois que digeri fui atrás de informação, virei ativista e me especializei para tentar fazer diferença na vida de outras mulheres, para que não passem pelo que passei. Trabalho na maternidade de uma Santa Casa e tenho a oportunidade de dar um cursinho mensal para gestantes e acompanhantes, e aproveito para tentar empoderar as mulheres e incentivar os maridos e mães para fazerem o mesmo.
Eu cheguei para a consulta de pré-natal após a cardiotocografia de rotina (foi a segunda que fiz após completar 40 semanas). Era sexta-feira. Na recepção a secretária já veio me contando animada que tinha ‘marcado o meu parto para o domingo!’. Eu, indignada, perguntei: ‘como assim?’. Ela disse que foi ordem da médica, e que ela falaria comigo. Entrei e mal a cumprimentei, já fui questionando isso. Ela. sorridente e muito calma, foi logo me explicando que era para garantir a vaga, porque as maternidades estavam lotando e tal, mas que eu poderia sim entrar em trabalho de parto e etc. Ela falou das 41 semanas, pedi para induzir, ela disse que eu poderia sofrer muito por três dias e não adiantar nada, porque meu colo estava desfavorável e que não existia indução pelo convênio. Eu sugeri ir para o SUS, e ela disse que eu passaria nas mãos de vários plantonistas. A casa de parto de São Sebastião (única de Brasilia) não me receberia mais por ter saído do protocolo (41 semanas). Saí pelos corredores aos prantos, ouvindo da sogra ‘cesarista’ que ela [médica] sabia o que estava fazendo, e da minha mãe, que ela sentia pelo meu sonho, mas não queria me ver sofrendo no parto normal.
Eu tinha 30 anos, engravidei com 29. Eu e meu marido nos programamos muito antes de engravidar. Hoje não pensamos em ter mais filhos. Meu sonho foi roubado, e me culpo mais que todos, porque me deixei ser enganada. Me senti diminuída, como ‘só mais uma’ que aceitaria sem questionar as condutas. Meu consolo foi saber que, depois da minha cesárea, a minha obstetra passou por uma cesárea e depois por um VBAC [parto vaginal após cesariana]! Tenho esperança e penso que ela deve ter se informado mais a respeito das evidências científicas.
Para mim era o momento mais importante da minha vida, mas lembro de mim deitada naquela mesa fria, com aquela máscara enorme no rosto, corpo imóvel, lágrimas rolando e por dentro eu só pensava: ‘o que estou fazendo aqui? Não era pra ser assim, não foi assim que eu sonhei conhecer meu filho.’ Para o meu azar, a anestesia não pegou na primeira vez e teve que aplicar outra. Aí, com a demora entre a primeira (que absorvi grande parte) e abrir e tirar, meu filho acabou absorvendo uma parte e nasceu com desconforto respiratório, ficou duas longas horas longe de mim, e não amamentei na primeira hora.”
“Me senti traída, tratada como um nada, pois de nada valeu meu desejo”, Denise Feliciano, de 37 anos, mãe de Raul Roberto e Laís (Guarulhos – SP)
“Em 2011, eu engravidei e troquei várias vezes de obstetra buscando um que fizesse parto normal. Sempre quis parto normal por ouvir de minha mãe que era melhor. Escolhi a obstetra por indicação de uma pessoa mais experiente e bem influente na minha vida, e ela me acolheu, pois minha gestação foi bem conturbada (perdi meu pai e sofri um acidente de carro). No final da gestação, ela disse que meu filho estava mostrando que já não estava mais bem dentro de mim, e que poderia morrer na minha barriga. Eu não tinha o mínimo de informação desse sistema cruel. Cheguei a ir para a maternidade antes do horário marcado para a internação porque estava com contrações, e ela disse que, indo para lá, elas iam cuidar de mim e eu teria meu filho de parto normal. Mas não foi isso que aconteceu: fui pra cesárea. Me senti a pessoa mais incapaz do mundo, frágil. Achava que tinha alguma coisa errada comigo, e por que justo comigo? Tantas pessoas ao meu redor marcavam cesárea, e eu, que queria ter normal, não podia, porque tinha algo errado comigo…. Me senti péssima mãe, pois a médica tinha dito que meu filho já não estava bem dentro de mim. Me senti um monstro fazendo mal para o meu próprio filho…. Como eu poderia ser capaz?
Quando ele tinha um ano e quatro meses, fiz o curso de doulas e descobri toda a verdade. Chorei horrores. Chorei sozinha, no curso com as meninas, no chuveiro, com o marido…. Me senti traída, humilhada, ingênua, tratada como um nada, pois de nada valeu meu desejo. Me senti enganada e ridicularizada. Não acreditava que ainda tinha dado presentes para a médica em agradecimento, na consulta pós parto. Neste curso, decidi que ninguém mais tomaria uma decisão por mim – ninguém. E já mudei um monte de coisas na minha vida. Uma semana depois, descobri que estava grávida da minha filha! Depois de dois anos [do primeiro parto], pari minha segunda filha em minha casa, num parto maravilhoso. Gritei tanto, tanto, tanto…. Tudo o que não tinha gritado em 36 anos da minha vida! Me senti poderosa, a deusa, a gorila no alto da montanha. Foi a melhor experiência da minha vida. Hoje em dia, as pessoas da família têm até receio de falar comigo, pois tenho resposta para tudo, mudei completamente a maneira de estar no mundo.”
Acesse no site de origem: As vozes caladas pela “cultura da cesárea” (Revista Fórum, 30/01/2015)