(O Globo, 04/02/2016) Faz-se emergencial assegurar a elas exercício da liberdade de prosseguir ou não na gravidez em caso de microcefalia, com base em decisão livre, responsável e informada
‘Zika pode atingir 1,5 milhão no Brasil e quatro milhões nas Américas, segundo a Organização Mundial de Saúde” (“El País”, 28-1-2016). No Brasil, a epidemia é apontada como a possível causa de 3.448 casos de microcefalia (malformação cerebral a implicar deficiências mentais e, em casos extremos, a morte do feto). Na atualidade, os países mais afetados são Brasil e Colômbia, tendo a epidemia alcançado mais de 22 países, em crescente processo de transnacionalização. O presidente dos EUA convocou assessores de Saúde e Segurança Nacional para avançar na produção de vacina contra o vírus transmitido pelo mosquito Aedes aegypti.
Em dezembro, o Brasil decretou emergência na Saúde Pública nacional. Contudo, a presidente e o ministro da Saúde já reconheceram terem perdido a batalha em face do vírus, o que revela o seguinte quadro:
a) Até o momento não há cura;
b) a vacina a ser desenvolvida demandará três a quatro anos (“Folha de S.Paulo”, 28-1-2016);
c) o vírus tem tido como vítima preferencial mulheres de baixa renda da Região Nordeste do país, concentrando em média 86% dos casos registrados.
Considerando a negligência do Estado pela assumida insuficiência de políticas públicas voltadas à prevenção, combate e erradicação da epidemia de zika, indaga-se: como proteger os direitos humanos das mulheres diante da extrema gravidade da situação?
Em 1994, na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, 184 Estados ineditamente reconheceram os direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos.
Tais direitos abrangem duas vertentes diversas e complementares. De um lado, apontam para um campo da liberdade e da autodeterminação individual, o que envolve o livre exercício da sexualidade e da reprodução humana, sem discriminação, coerção ou violência. Eis um terreno em que é fundamental o poder de decisão no controle da fecundidade. Consagra-se a liberdade de mulheres e homens de decidir se e quando desejam se reproduzir. Trata-se de direito de autodeterminação, privacidade, intimidade, liberdade e autonomia individual, em que se clama pela não interferência do Estado.
Por outro lado, o efetivo exercício dos direitos sexuais e reprodutivos demanda políticas públicas, que assegurem a saúde sexual e reprodutiva. Nesta ótica, essencial é o direito ao acesso a informações, a meios e recursos seguros, disponíveis e acessíveis. Essencial também é o direito à capacidade de desfrutar de uma vida sexual segura e satisfatória e de reproduzir-se ou não, quando e segundo a frequência almejada. Inclui-se ainda o direito ao acesso ao progresso científico e o direito à educação sexual. Clama-se aqui pela interferência do Estado, para que implemente políticas públicas garantidoras do direito à saúde sexual e reprodutiva.
No plano dos direitos sexuais e reprodutivos, faz-se emergencial assegurar às mulheres o exercício da liberdade de prosseguir ou não na gravidez em caso de microcefalia, com base em decisão livre, responsável e informada. Se a decisão for pelo prosseguimento, fundamental é a garantia de políticas de proteção à maternidade e à infância, promovendo medidas visando à inclusão social das crianças com deficiência, em conformidade com a Convenção para a Proteção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil. Se a decisão for pela interrupção, fundamental é assegurar o direito ao aborto legal, em defesa da autonomia e da saúde das mulheres, no marco do Estado constitucionalmente laico, tendo como precedente a relevante decisão do STF que autorizou a interrupção da gravidez em caso de anencefalia fetal. Na Colômbia — que registra 2.116 grávidas infectadas — a legislação autoriza o aborto em caso de estupro ou graves problemas de saúde ou deformações fatais no feto. A ordem internacional enfaticamente recomenda aos Estados que assumam o aborto ilegal como uma questão prioritária e que sejam revisadas as legislações punitivas em relação ao aborto, considerado um grave problema de saúde pública.
A ilegalidade do aborto leva à sua clandestinidade; a clandestinidade leva à insegurança; a insegurança leva à morte evitável de mulheres.
O drama da zika aponta para desafios contemporâneos multidimensionais e transnacionais, demandando políticas nacional e internacional de prevenção; informação; educação sexual; acesso a métodos contraceptivos; diagnósticos mais precisos; pesquisa; fundos nacionais e internacionais para avançar na elaboração da vacina; dentre outras medidas. Neste contexto, importa assegurar a voz e a escuta ativa das mulheres grávidas infectadas, de seu sofrimento, com respeito e dignidade, sob a ótica da saúde pública e da justiça social.
Flávia Piovesan é professora de Direito
Acesse o PDF: Zika e a voz das mulheres, por Flávia Piovesan (O Globo, 04/02/2016)