(Folha de S. Paulo, 29/01/2016) O garoto Felipe (nome fictício), hoje com 11 anos, nunca se viu ou se apresentou do modo designado em sua certidão de nascimento –um menino. Até agora: seu nome e documento serão alterados para o gênero feminino, como ela sempre se viu.
A decisão desta quinta (28) foi tomada pelo juiz Anderson Candiotto, de Sorriso (MT), que diz que não tem conhecimento de outras decisões semelhantes que envolvam crianças no Brasil.
“Não se trata de transmutação genital, tão somente se reconhece que a criança possui transtorno de identidade de gênero e que ela se vê e se apresenta para o mundo como menina, e não como menino”, disse o juiz à Folha.
“E como um dos fundamentos maiores do nosso Estado é promover a cidadania e a dignidade, para que as pessoas possam ter direito ao bem-estar e à felicidade, nada mais justo que conste nos seus documentos o nome e o gênero feminino”, continua Candiotto.
O nome da menina não foi divulgado, nem o de seus pais ou a profissão deles, para não identificar nem expor a família na cidade de 80 mil habitantes, de acordo com o juiz. O processo corre em segredo de Justiça.
A decisão responde a uma ação que corre no Tribunal de Justiça do Estado desde 2012, quando a criança tinha oito anos.
À época, os pais, alertados de que ela não se reconhecia como menino, levaram-na ao Amtigos (Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP), onde foi constatado que ela possuía transtorno de identidade de gênero.
“A conclusão do ambulatório foi: enquanto permitido que exerça personalidade como do gênero feminino, isso dá satisfação e felicidade a essa criança. Enquanto ela está se portando e se colocando para o mundo como do gênero masculino, aí ela sofre cotidianamente. Era uma prisão psicológica”, explica o juiz.
Com o laudo em mãos, a família procurou a Defensoria Pública de Sorriso e entrou com uma ação na Justiça. O tribunal expediu uma decisão provisória a fim de que, na escola onde estudava, ela pudesse se vestir e ser tratada como menina, além de frequentar o banheiro feminino. De acordo com o juiz, não houve resistência à liminar.
“Imagino que em determinado momento, alguma outra criança, por curiosidade, possa tê-la abordado com alguma pergunta. Mas ela não relatou nenhum caso de preconceito na escola”, explica o juiz. A criança tem irmãos, que lidam bem com a situação, conta ele.
Depois, a criança foi ouvida no chamado “depoimento sem danos”, em que psicólogos trabalham em atividades lúdicas, monitoradas por oficiais que acompanham tudo por câmeras de outra sala. A conclusão foi a mesma: Felipe não se via como menino. A oitiva, assim como o laudo da USP, foi determinante para a decisão judicial, diz Candiotto.
Como base de sua decisão, o juiz cita resoluções do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que permitem “a retificação do sexo jurídico sem a realização da cirurgia de transgenitalização”; além da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que equipara a união estável homoafetiva ao casamento, na qual o ministro Ayres Britto diz que “a preferência sexual se põe como direta emanação do princípio da ‘dignidade da pessoa humana'”.
A reportagem pediu uma entrevista com o coordenador do Amtigos para comentar o caso, mas não obteve resposta.
Thiago Amâncio
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