(G1, 17/07/2015) Transcidadania completa 6 meses com evasão de 10% e lista de espera. G1 acompanhou aulas por um mês e ouviu dez participantes.
Há um ano, Aline Marques passou a ver mais a luz do dia. Em vez de trabalhar nas noites de São Paulo, ela agora acorda cedo, vai para a escola, recebe bom dia dos colegas e ganha abraços no trabalho. Aline diz que a nova rotina é “pura felicidade” – e o que ela chama de felicidade é não ser humilhada, não sofrer ameaças e não apanhar.
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Aline é uma das 100 transexuais e travestis que participam do Transcidadania, projeto piloto da prefeitura de São Paulo que dá bolsas de R$ 827,40 reais para quem cumprir 30 horas de aulas semanais. O G1 acompanhou as aulas e as atividades do grupo durante um mês e entrevistou dez participantes – veja o vídeo com os relatos.
Além de frequentar a escola (86% não haviam terminado o ensino fundamental), as participantes recebem atendimento psicossocial, pedagógico e médico. O foco do programa são pessoas em situação de vulnerabilidade: 85% vivem em quartos compartilhados, em casa de cafetina ou hoteis, 6% estão em albergues, 5% em ocupações e 4% são moradores de rua. Uma das exigências para ingressar no programa é estar há pelo menos três anos sem emprego com carteira assinada.
Após seis meses do lançamento, a taxa de evasão é de 10% – além dessas dez, outras três pessoas saíram porque foram presas, uma conseguiu emprego e uma transexual morreu (baleada por um cliente quando estava se prostituindo). Mais de mil pessoas se inscreveram para a lista de espera e 171 estão aptas a participarem de uma eventual segunda turma.
As 30 horas obrigatórias são preenchidas por atividades escolares e cursos ministrados no Centro de Cidadania LGBT, recém-inaugurado no Largo do Arouche. As salas ficam cheias (as faltas são descontadas do pagamento) e muitas vezes os professores têm dificuldade de lidar com a ansiedade dos alunos pela vez de falar – e a vontade de serem ouvidos.
“A primeira aula foi impossível de dar. Todo mundo falava junto”, contou o professor Fabio Mariano, doutorando em ciências sociais. Além da dificuldade de relacionamento entre os participantes – em uma das turmas a aula foi interrompida porque o grupo considerou a roupa de uma das alunas muito curta e transparente para o ambiente do curso – há ainda a dificuldade de se conviver com o contexto de violência que muitos vivem e acabam reproduzindo em falas e discursos agressivos. “A violência que sofremos na rua às vezes é internalizada e explode no outro”, disse Fabio em uma das aulas.
Mas, aos poucos, as coisas parecem mudar. “Teve uma aluna que pra qualquer coisa falava: ‘vou pegar fulano pelo pescoço’, e foi parando. Ao mesmo tempo, ela foi começando a participar de fóruns e debates públicos”, contou o professor.
No curso de Cidadania e Direitos Humanos, os homens e mulheres trans aprendem como funciona o Congresso, quais são os direitos que todos temos garantidos pela Constituição, como é a divisão de poderes e como se faz uma lei no Brasil.
Nos debates, surgem dúvidas sobre a possibilidade de usar o nome social nas escolas e em hospitais, e sobre a recente questão da retirada de referências às questões de gênero no Plano Municipal de Educação. Os professores estimulam os alunos a pensar políticas e formas de ter mais representação nos assuntos de interesse do público LGBT. “A gente precisa investir na formação de vocês”, diz Fábio para os alunos. “Eu não sou a voz de vocês. Vocês são a voz de vocês.”
A certeza é a rua
O perfil dos participantes do programa é muito parecido. A maior parte é de negros e pardos – 63%. São 52 travestis, 43 transexuais e cinco homens transexuais. Alguns foram expulsos de casa pelos pais ou sairam por vontade própria e conheceram a vida na rua. A grande maioria, segundo a coordenação, se prostitui – poucas pararam, mas muitas conseguiram diminuir a frequência dos programas.
“Diminuiu minha carga horária, mas preciso complementar minha renda. […] Antes eu tinha que ir todo dia. O projeto não é a salvação, mas é uma ajuda. A única certeza é a rua”, diz Ciara Pitma, uma piauiense de 25 anos que sonha em trabalhar com moda.
Algumas – geralmente as mais jovens – dizem gostar da liberdade que a prostituição dá. Mas as falas são geralmente de cansaço e vontade de mudar de vida. “Nunca consegui um trabalho assalariado. O que me restou foi fazer programa. […] Já fui espancada, já me abusaram, já me roubaram. Eu não quero mais isso pra mim. Eu quero apenas ter um trabalho digno”, diz Ciara.
A grande preocupação dos integrantes do programa é conseguir um emprego – segundo uma avaliação feita ao final do semestre, 54% buscam no projeto uma inserção no mercado de trabalho. E esse é também o grande desafio da coordenação. “A gente não quer absorver essas pessoas dentro do poder público. A gente quer que elas vão pro mercado de trabalho. […] Se a gente conseguir 100 pessoas estagiando em empresas ao final do programa a gente tem aí uma vitória”, disse a então coordenadora do programa – e também transexual – Symmy Larrat.
Mas para algumas participantes, a mudança, mesmo que pequena, significa um recomeço. “Você sabe a dignidade de levantar de manhã, tomar um café, pegar um ônibus e as pessoas te tratarem bem? Eu revivi. Eu vivia na escuridão, eu me vestia de palhaço pra dar sexo pra um monte de homens. Eu fiquei depressiva, eu pedia pra Deus me levar”, diz Aline. “E hoje… Hoje eu me sinto integrada na vida das pessoas. Hoje eu vejo que é simples a vida. É simples ser feliz.”
Giovana Sanchez
Acesse no site de origem: ‘Quero trabalho digno’, diz transexual; veja relatos sobre projeto social em SP (G1, 17/07/2015)