(Revista Fórum, 13/09/2015) Nesta semana aconteceu o I Seminário Queer no SESC-SP e o conceito de cisgeneridade correu os perfis de Facebook em discussões entre especialistas e ativistas. Ainda que com posicionamentos controversos, toda essa discussão possibilitou e demonstrou a necessidade de se pensar, com profundidade, além da definição dura de verbete o conceito de cisgeneridade.
Judith Butler, expoente mundial dos estudos queer, quando questionada sobre o termo “cisgênero”, respondeu que o considerava uma ferramenta interessante, uma vez que nomeava uma possibilidade, a de ser cisgênero, antes considerada norma. Retirando o antigo caráter natural que foi embasado pelos discursos médico, religioso e jurídico.
Na realidade, a cisgeneridade nunca foi uma possibilidade para ninguém, ela é uma imposição, assim como a heterossexualidade é compulsória. A cobrança pela suposta coerência entre anatomia e gênero esmaga todos os corpos. Podemos compreender isso sem perdermos a noção de indivíduo. No entanto, esse novoconceito pode estar contribuindo para o reforço de um novo binário — pessoas cis ou pessoas trans e não mais macho e fêmea. Nessa perspectiva é importante olharmos os componentes da cisgeneridade, onde a ausência de elementos, como os signos da heterossexualidade, fragilizam esse conceito — não o anulando ao todo.
“EM JANEIRO DE 2014, OITO MESES APÓS TER DADO ENTRADA EM UM PROCESSO JUDICIAL PARA RETIFICAÇÃO DO REGISTRO CIVIL E DO SEXO EM MEUS DOCUMENTOS, TIVE UMA SURPRESA: AQUILO QUE EU DEMANDAVA ESTAVA SENDO DEFERIDO CONSTITUCIONALMENTE. O ESTADO PASSOU A ME RECONHECER COMO MULHER A PARTIR DAQUELE MOMENTO, OU SEJA, AOS 20 ANOS DE IDADE EU NASCIA PARA A RECEITA FEDERAL. DEPOIS DAQUELA DATA, SE EU DECIDISSE CASAR OU ESTABELECER UMA UNIÃO ESTÁVEL COM UM HOMEM, CONSTARIA QUE EU ERA UMA MULHER HETEROSSEXUAL EM MEUS DOCUMENTOS. ASSIM CONTESTEI A DESIGNAÇÃO SEXUAL MASCULINA DADA A MIM AO NASCER, DESTRUINDO O VIR A SER HOMEM QUE FOI PROMETIDO AOS MEUS PAIS EM ALGUM GELADO ULTRASSOM HÁ 22 INVERNOS.
MAS ESSA HETEROSSEXUALIDADE É ARTIFICIAL, ELA NÃO SE MATERIALIZA FORA DA LEGALIDADE. COMIGO OS HOMENS POSSUEM UM TOQUE DE RECOLHER ÀS AVESSAS: SURGEM DURANTE A NOITE E SOMEM QUANDO AMANHECE. OS RITUAIS DE APRESENTAÇÃO FOGEM DO MEU ALCANCE, SEUS PAIS E AMIGOS JAMAIS PODERÃO SABER QUEM SOU. PUBLICAMENTE EU TORNO-ME UMA AMEAÇA, UM FANTASMA QUE OS ASSOMBRA, CHEGO A ME SENTIR CONSTRANGIDA POR CONSTRANGÊ-LOS. POR SABER QUE O DESEJO QUE SENTEM POR MIM LHES CAUSA VERGONHA, UM OUTRO TIPO DE FEBRE. O AFETO CALADO É UM ATO POLÍTICO DE DESVALORIZAÇÃO DO CORPO, DO MEU CORPO.
A MINHA ORIENTAÇÃO SEXUAL É CLANDESTINA, DETECTADA SOMENTE PELOS OS RADARES DO ESTADO E ISSO, APESAR DE TUDO, NÃO É POUCA COISA. ME PERMITE ACESSAR SORRATEIRAMENTE DETERMINADOS DIREITOS TRABALHISTAS, CIVIS E CRIMINAIS – NO CASO DAS PESSOAS T QUE JÁ RETIFICARAM O NOME E SEXO NOS DOCUMENTOS. UMA VEZ QUE A CISGENERIDADE É MARCADA PELO MESMO CAMPO, DO DIREITO AO PRÓPRIO NOME E AO GÊNERO QUE SE IDENTIFICA, ELA ABRE FRATURAS PARA QUE OUTROS SUBALTERNOS SE INFILTREM. UMA RUPTURA NA HETEROSSEXUALIDADE E A CISGENERIDADE ENTRA EM DESEQUILÍBRIO, ASSIM COMO FRAGMENTOS NA CISGENERIDADE ABALAM A HETEROSSEXUALIDADE. (DEPOIMENTO DE SOFIA)
Quando ilustramos mulheres como Maria Gadú ou Zélia Duncan, podemos afirmar que elas estão em conformidade com aquilo que é cobrado socialmente em termos de feminilidade? Esse questionamento revela um drama, pois elas serão vistas como subalternas, mesmo que permaneçam se identificando com a designação sexual atribuída ao nascer. Contrariam aquilo que é esperado de uma mulher, seja em marcas, gestos ou comportamentos. Sendo vistas como aquém, rascunhos do modelo vigente que são impedidas de acessar, ou que acessam precariamente, deste modo, elas acessam a cis-normatividade de forma precária.
Neste sentido é importante pensar a cisgeneridade não apenas no âmbito da identificação com o gênero ao qual o sujeito é designado ao nascer, essa característica é a que opõe a cisgeneridade à transgeneridade, mas pensar a cisgeneridade enquanto conceito, enquanto possibilidade de interpretação do real. Pensá-la em relação a si mesma, nas diversas possibilidades de acesso a esta categoria.
Quando falo de acesso à cisgeneridade, o faço porque os sujeitos que são cisgêneros, ou seja, que se identificam com o gênero ao qual foram designados no nascimento, são múltiplos, e a cisgeneridade, como paradigma normativo de gênero, possui sua dimensão utópica, estabelecendo o que é ótimo para um homem e para uma mulher. Neste sentido, a cisgeneridade não pode ser entendida como um monolito, mas como um espectro hierarquizado em relação a si mesmo. De modo que, mulheres masculinizadas têm acesso a uma cisgeneridade fragilizada, uma vez que são lidas como “menos mulheres”, assim como homens cis afeminados são lidos como “menos homens”. É importante salientar que isso não significa que estes sujeitos não sejam cisgênero, mas que, acessam a uma performance de gênero subalterna, considerada inferior aos olhos da norma de cisgeneridade hegemônica.
Obviamente alguns poderão dizer que esta subalternidade não se deve a uma cisgeneridade defasada, mas a um recorte de orientação sexual. Ora, é importante notar que nenhum sujeito se apresenta ora com uma faceta identitária, ora com outra. Os sujeitos apresentam-se e inserem-se no mundo tomados de uma multiplicidade de fatores identitários que conjugam na conformação da identidade. A tradição dos estudos de gênero, desde a publicação de Traffic in Women, de Gayle Rubin, distingue gênero de orientação sexual. Distinção essa que é necessária e didática. Mas, como todo aporte teórico, tal separação tem se radicalizado em categorias que não dialogam, de modo que o atravessamento entre gênero e orientação sexual é negado ou deixa de ser visto.
Este atravessamento é fundamental para entendermos o funcionamento da cis-heteronorma, e de todo o mecanismo de subalternização dos sujeitos sexo-gênero-divergentes. Neste sentido, é preciso que pensemos como a cisgeneridade e a heterossexualidade, enquanto regimes sexo-políticos, se articulam. Pensemos, por exemplo, no caso de um homem gay afeminado, ainda que ele se identifique como homem, e que de fato o seja, sua masculinidade, aos olhos da norma, é constantemente posta em questão, porque o homem cisgênero hegemônico “pega mulheres” e é “másculo”, ou seja, há um processo de negação social de uma masculinidade plena. Trata-se de um homem incompleto, uma subversão do homem. Este homem gay afeminado, em decorrência da intersecção entre gênero e orientação sexual, terá acesso a uma cisgeneridade diferente daquela do homem heterossexual cisgênero e viril. Da mesma maneira: um homem heterossexual afeminado acessará uma heterossexualidade menorizada por não atender plenamente ao que se espera de um homem “de verdade”, posto que não é viril.
O que estamos a propor nesta reflexão é que comecemos a pensar a cisgeneridade a partir das intersecções com outros marcadores sociais da diferença, que atravessam o sujeito cisgênero, e dentro desse um espectro constroem relações de acesso pleno ou subalterno aos privilégios da normatividade. Obviamente, a cisgeneridade, seja ela qual for, hegemônica ou subalterna, está em condição de privilégio em relação às vivências trans, posto que, a briga pelo nome, pelo reconhecimento, pela existência enquanto sujeito social de direitos não se fazem necessários nas vivências de pessoas cis, enquanto nós, pessoas trans, temos esses obstáculos em comum em nossas trajetórias.
No relato de Sofia, no início do texto, percebemos, sob o aporte agora da transexualidade, como as noções de gênero e orientação sexual se conjugam na inserção dos corpos no mundo, a heterossexualidade a qual eu e Sofia, como travestis, e outras tantas de nós temos acesso é vista como protética, como uma falsificação linguística do desejo. Trata-se, portanto, de uma heterossexualidade subalterna.
Este texto não pretende negar os privilégios da cisgeneridade, uma vez, que ainda que um sujeito acesse a uma cisgeneridade subalterna, ele prossegue como cisgênero, ou seja, privilegiado em relação às pessoas trans. Não pretendemos também, que orientação sexual e gênero sejam confundidos, mas que, pensemos além das categorias estanques. A realidade não se constrói com purismo conceitual, os conceitos que separamos, para fins didáticos, coexistem, se atravessam e se reforçam. Não há condições de superar o paradigma da cisgeneridade sem que percebamos seu funcionamento, e pra isso é necessário observá-la em suas nuances.
*Sofia Favero é uma mulher transexual, ativista, estudante de psicologia, criadora da página Travesti Reflexiva e coordenadora do Cursinho EducaTrans em Aracaju.
Acesse no site de origem: Toda cisgeneridade é a mesma? Subalternidade nas experiências normativas, por Helena Vieira e Sofia Favero (Revista Fórum, 13/09/2015)