(Revista TRIP, 22/07/2016) “Eu não entendo por que as mulheres ou as pessoas LGBT dizem que têm que lutar por direitos. Talvez isso fosse necessário há alguns anos, mas não hoje. Direitos iguais já existem, o que querem é privilégios”. Essa frase é hipotética, mas não é irreal. É em termos parecidos que muitas pessoas reagem hoje às demandas do feminismo ou de quem diz que é preciso falar sobre gênero. É mesmo verdade que já tivemos avanços no tempo: há 80 anos, nós mulheres não podíamos participar da política institucional, porque não podíamos votar ou ser votadas. Antes de 1962, não havia isso de igualdade entre homens e mulheres no Código Civil, e mulheres casadas precisavam de autorização expressa dos maridos para trabalhar. Os tribunais do país não sabiam o que era violência de gênero antes da Lei Maria da Penha, de 2006.Há cinco anos, não havia possibilidade de se celebrar casamento com alguém do mesmo sexo. É fato, não estamos hoje tão desprotegidas quanto antes, mas o que a progressão temporal dessas conquistas de direitos também mostra é que o caminho para a igualdade é lento e recente: não acontece do dia para a noite nem é um processo acabado. Ainda precisamos falar sobre gênero.
Leia mais:
Considerações sobre o que chamam de ‘ideologia de gênero'(Brasil Post, 21/07/2016)
Discutir gênero não tem nada a ver com “apologia gayzista”, por Raisa Pina (CartaCapital, 19/07/2016)
Precisamos falar sobre gênero, por Sinara Gumiere (Justificando, 18/07/2016)
Pouco mais de metade da população mundial é de mulheres, mas quanto mais se avança na hierarquia de poder das profissões, menos mulheres se vê. Somos hoje menos de 10% dos representantes em nosso Congresso Nacional, somos apenas 11% nos mais altos cargos de grandes empresas brasileiras. A desigualdade do trabalho está tanto no mundo do emprego quanto dentro de casa, os dois domínios de ocupação feminina: as mulheres ainda são com frequência as responsáveis solitárias pelo cuidado doméstico, mesmo quando se ocupam fora de casa da mesma maneira que seus companheiros. É ainda na casa que as mulheres são agredidas ou mortas pelos afetos: o horror da violência doméstica é a forma persistente pela qual os homens se apoderam dos corpos e das vidas das mulheres. Dados do Ministério da Saúde mostram ainda que a cada quatro minutos uma mulher é atendida em algum serviço de saúde do país por ser vítima de violência sexual. As mulheres temem por suas vidas, nos espaços e relações que deveriam garantir mais confiança e proteção.
A desigualdade do gênero ainda vitima outras de nós de maneira particular. O Supremo Tribunal Federal reconheceu as uniões não-heterossexuais em 2011, mas essa conquista teve pouco reflexo em outras dimensões de proteção das vidas LGBT. Estima-se que uma pessoa LGBT seja assassinada por motivo de ódio a cada 27 horas no Brasil. Relatório da Unesco de 2012 mostra que, nas escolas, o bullying homofóbico e transfóbico pode causar depressão, isolamento social e evasão escolar. Crianças e adolescentes que sofrem desse tipo de discriminação têm mais chances de cometer suicídio. O acesso à escola é um problema especial para estudantes transexuais, devido a políticas excludentes de utilização de uniformes ou dos banheiros. Por isso, essas estudantes têm mais chances de ter pior desempenho acadêmico, maior número de faltas e abandono precoce dos estudos. Para meninos e homens heterossexuais, o regime do gênero também deixa suas marcas de opressão. São os meninos que aprendem cedo a ter medo de demonstrar vulnerabilidade, a esconder seus afetos e a reproduzir a linguagem da violência, que também os fere. São homens pais que não podem ter direito a uma licença paternidade que permita cuidar longamente de seus filhos pequenos, ainda que queiram.
Falar sobre gênero é colocar todos esses impedimentos, dores e violências em questão. É falar sobre o que fere ou limita todos e todas nós, de diferentes maneiras. É possível que nem sempre seja tarefa fácil, porque implica em questionar e balançar aquilo que fomos ensinadas a acreditar ser o certo ou a única possibilidade para nossas vivências. Mas não precisamos ter medo. Falar sobre gênero não é falar sobre rancor ou privilégios, é falar sobre possibilidades de futuro. Falar sobre gênero é poder imaginar que um dia todas nós poderemos nos ver livres de conviver com o peso de ter que ser quem não somos, de ver negadas escolhas que gostaríamos de ter feito ou de viver com medo. Falar sobre gênero é reivindicar uma vida mais justa e feliz para todas nós.
*Gabriela Rondon é advogada e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
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