(Opera Mundi, 11/09/2015) Em sua primeira visita a SP, filósofa norte-americana falou sobre violência policial e alianças entre movimentos sociais e comentou polêmica sobre gênero e diversidade sexual no currículo escolar: ‘exclusão do tema é uma forma de censura’
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Em 1990, a filósofa norte-americana Judith Butler publicou nos Estados Unidos o livro Gender Trouble. Editada no Brasil com o título Problemas de Gênero, a obra rapidamente se tornou um dos pilares dos estudos feministas e da teoria queer. No início de setembro, 25 anos depois da publicação de seu mais conhecido trabalho, Butler finalmente veio ao Brasil para um debate público sobre os temas que a movem: identidades, vulnerabilidades e resistências.
Após participar de congressos em São José do Rio Preto e Salvador, a filósofa apresentou nesta quarta-feira (09/09) a conferência magna do I Seminário Queer, realizado no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. Organizado pela revista Cult e pelo Sesc, o evento propôs debates sobre a superação das fronteiras sexuais e de gênero e suas implicações na cultura e na sociedade.
Judith Butler é um nome central neste universo por suas contribuições aos estudos feministas e queer, especialmente com a noção de gênero como performatividade e com a crítica do que ela denomina matriz heterossexual. A primeira sugere que gênero é ação – muitas e diferentes ações que, repetidas ao longo da vida, nos levam a reiterar nossa identificação com certo gênero e expressá-la ao mundo. Já a segunda estabelece como norma a conexão entre sexo, gênero e desejo em uma lógica voltada para a reprodução da espécie: uma pessoa com pênis é necessariamente um homem, que deve necessariamente sentir desejo por mulheres, que por sua vez são pessoas que necessariamente têm vagina e que necessariamente sentem desejo por homens.
Qualquer existência que não obedeça a essa norma é considerada desviante. Entre estas existências estão pessoas lésbicas, gays, trans e intersex que, assim como muitas feministas, encontraram na obra de Butler mais um instrumento para perturbar normas identitárias e sexuais que limitam possibilidades de vida e que estão no centro da violência contra mulheres e pessoas LGBTI.
“Meu trabalho com a teoria queer sempre interagiu com um movimento social mais abrangente”, comentou Butler durante a entrevista coletiva que antecedeu sua intervenção no seminário. “O aspecto dos estudos queer que eu mais valorizo diz respeito às alianças. Queer não é uma identidade. Você pode dizer ‘eu sou queer’, mas é muito estranho dizer isso. Acho que queer é uma maneira de nomear um movimento que toma uma direção diferente daquela esperada. Então pertencer a um movimento queer é contestar as normas dominantes e o processo de normalização que torna tão difícil para pessoas lésbicas, gays, bissexuais, intersex, trans, viver mais aberta e facilmente e aparecer no espaço público.”
Para a filósofa, as alianças que caracterizam o movimento queer vão além das questões sexuais e de gênero. “Recentemente eu tenho sentido que o ativismo queer é mais eficiente quando se alia a grupos de pessoas que estão lutando contra a precariedade econômica e a privação política. E acho que a ideia de alianças que é tão importante para o movimento queer deve continuar se expandindo, para que a gente possa construir uma esquerda que se oponha a crescentes desigualdades econômicas, racismo, homofobia e sexismo. Acho que essa é uma maneira de pensar em coalizões em toda a sua complexidade e com todas as suas dificuldades.”
Esta foi a principal questão abordada pela filósofa em sua conferência, intitulada Rethinking vulnerability and resistance (“Repensando a vulnerabilidade e a resistência”, em tradução livre). Butler explicou que hoje tem se dedicado principalmente à questão da precariedade e às mobilizações globais contra as desigualdades econômicas, sociais e políticas, que produzem cada vez mais populações “designadas como dispensáveis e indignas de luto”.
Nesse sentido, os movimentos e as políticas denominados queer podem seguir fazendo sentido se a palavra mantiver pelo menos dois sentidos, diz Butler: “um deles diz respeito a divergência, desvio da norma, se abrir para possibilidades; o segundo diz respeito à aliança entre grupos de pessoas que não teriam muito em comum e entre os quais há inclusive, às vezes, desconfiança e antagonismo.” Este último sentido abarca também a “afirmação de diferenças que não podem ser superadas por uma identidade unificada”.
“Nem toda aliança é amor. Às vezes nós nos aliamos para estabelecer o direito de amar e viver sem ser submetido a violência”, e isso não significa “que nós amemos e desejemos” todas as pessoas a quem nos aliamos. Em alusão a tensões dentro do movimento LGBT e dos movimentos sociais como um todo, Butler lembrou que “alianças são difíceis” e que “atuar em conjunto não pressupõe nem produz uma identidade coletiva”, mas sim uma série de relações que “incluem apoio, disputas, rupturas e solidariedade.”
Gênero na escola: medo e fascínio
O mais quente debate sobre gênero e sexualidade no Brasil no momento diz respeito à inclusão destes temas no currículo escolar, e Butler foi instada pela plateia a falar sobre o assunto. Como era de se esperar, as pessoas que apoiam e trabalham pela discussão da temática com crianças e adolescentes em prol de uma educação que acolha a diversidade sexual e de gênero e problematize a violência contra mulheres e pessoas LGBT estavam muito bem representadas na plateia que a ouvia. Aqueles que são contrários à inserção do debate de gênero e diversidade sexual nas escolas também se fizeram representar, através de um inusitado protesto pouco antes da apresentação de Butler.
Cinco manifestantes – membros do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira, que se define como uma entidade “em defesa dos valores da civilização cristã” – se postaram em frente ao Sesc Vila Mariana com uma bandeira do Brasil e um estandarte. Ao som de uma gaita de foles, eles carregavam cartazes denunciando a “ideologia de gênero” e a “ideologia homossexual” nas escolas, prelúdios da “destruição da família”.
Butler comentou o medo que o debate de gênero e diversidade sexual incute em setores que desconhecem os conceitos e seu potencial libertador – ou temem exatamente isso – e se utilizam de argumentos pseudorreligiosos ou pseudocientíficos para fundamentar sua oposição. “A exclusão do tema das políticas educacionais me parece uma forma de censura, com o objetivo de abafar a conversa sobre as maneiras diversas em que vivem os gêneros e com o intuito de estabelecer que, seja qual for o seu sexo, ele corresponde ao que está na Bíblia ou ao que determina alguma versão da ciência que esteja de acordo com o que está na Bíblia. A censura ao tema é claramente um ato de medo.”
A filósofa lembra também que a determinação sexual e a formação das identidades de gênero são tópicos calorosamente disputados e discutidos entre cientistas. “A comunidade científica tem diferentes e complexas visões sobre a determinação sexual e cientistas brigam o tempo todo sobre isso. Este é um tema muito disputado dentro da ciência. Então por que esses debates não devem ser conhecidos e discutidos? Isso também é ciência. Sabemos que a categoria ‘sexo’ muda ao longo da história e em diferentes lugares do mundo; por que isso não deve ser discutido? Por que não seria interessante e útil saber sobre as diferentes maneiras que as pessoas pensam sobre sexo? Não apenas a versão da religião ou uma versão única e reducionista da ciência. Em nome da investigação intelectual aberta, deveria ser obrigatório o ensino de gênero.”
Para além da ignorância sobre os conceitos e os fundamentos das teorias de gênero e sexualidade, Butler aponta que o temor dos conservadores tem muito de fascínio. “Quando você começa a censurar uma palavra, ‘gênero’, é porque essa palavra é considerada muito poderosa. Então eles estão atribuindo certo poder a essa palavra. Como se, se uma jovem aprender que ela pode mudar de gênero, ela vai de fato mudar de gênero imediatamente. Se um ou uma jovem aprender sobre a vida das pessoas gays ou das pessoas lésbicas, aquele ou aquela jovem vai se tornar gay ou lésbica. Eles imaginam que o que quer que seja que nós estamos fazendo é tão atraente e tão poderoso que os e as jovens não vão conseguir resistir. E que todas e todos serão recrutados em um grande exército de lésbicas, gays e pessoas trans. É uma grande fantasia.”
“Regime de violência legal”
A filósofa comentou também os protestos contra a violência policial em seu país, em especial o movimento Black Lives Matter, conectando-o ao contexto brasileiro. “No Brasil vocês vivem com o fato de que milhares de pessoas são mortas anualmente pela polícia e menos de 1% desses assassinatos geram ação penal.” Para Butler, esse “regime de violência e cumplicidade policial” deve ser compreendido internacionalmente. “Isso nos possibilita não só formar redes globais de solidariedade e protesto contra esse tipo de violência, mas também observar como o racismo funciona no sentido de permitir que algumas populações sejam livremente assassinadas enquanto outras são intensamente protegidas.”
Este “regime de violência legal”, diz Butler, afeta também a vida de pessoas trans e queer e mulheres, que são “desproporcionalmente vulneráveis a mortes violentas”. A filósofa trouxe alguns dados sobre a realidade dessas populações no Brasil: segundo o Instituto Avante, cerca de 40 mil mulheres foram assassinadas entre 2001 e 2010, e o país é o líder no mundo em assassinatos de pessoas trans, de acordo com a iniciativaTrans Murder Monitoring.
“Nós podemos e devemos produzir mais números sobre isso, mas números têm sempre um contexto e podem sempre ser desconsiderados, além de não serem capazes de produzir, por si só, uma análise.” Para Butler, “no Brasil não está em curso apenas um terrorismo sexual e de gênero que tem a violência e a cumplicidade da polícia em seu cerne, mas também a longa história do racismo, as reverberações constantes da escravidão na vida cotidiana, e a designação de algumas populações como dispensáveis e indignas de luto, disponíveis para serem assassinadas com impunidade.”
Essas populações vivem um paradoxo político, diz a filósofa: sua vulnerabilidade pode e deve ser ressaltada, o que incorreria em vitimização e no clamor por proteção legal, exemplificado pela lei do feminicídio, sancionada em março pela presidenta Dilma Rousseff. Mas a insistência nesse paradigma pode, involuntariamente, apagar o histórico de resistência cotidiana de mulheres, minorias étnico-raciais, pessoas trans e queer e trabalhadoras do sexo. “Não quero subestimar a importância de novas leis, mas se elas são instituídas dentro de um regime legal que exercita sua própria forma de violência, quais são as implicações disso para o objetivo final de mudar as estruturas sociais de racismo, misoginia, homofobia e transfobia que levam à produção e à reprodução de vidas indignas de luto?”
Questionada pela plateia sobre a demanda de criminalização da violência contra pessoas LGBT por parte do movimento social no Brasil, Butler se diz resistente à medida. “É muito difícil ser a favor do aumento da população carcerária. Não acho que o encarceramento seja a resposta para a violência contra pessoas LGBTQ. Também por isso nós devemos ter uma análise mais complexa da violência legal: a prisão, junto com a polícia, é um dos maiores instrumentos de violência legal em diversos países.”
Ela apontou que a criminalização individualiza a violência, criando “aberrações”. “A violência contra mulheres, pessoas LGBTQ, minorias étnico-raciais, trabalhadoras sexuais e migrantes é a expressão de uma violência institucional mais abrangente, de formas mais abrangentes de racismo, sexismo, homofobia, xenofobia. As prisões e os tribunais não vão reconhecer que a violência contra mulheres e pessoas trans é endêmica na sociedade. Elas vão criar indivíduos criminosos e dizer ‘é apenas essa pessoa, e essa pessoa, e essa pessoa’. Então elas vão se exonerar da responsabilidade ao criminalizar indivíduos e isolá-los da sociedade.”
Butler propõe, mais uma vez, um paradoxo, lembrando também que a polícia e o sistema legal acabam sendo cúmplice de diferentes violências ao escolher não investigá-las e processá-las. “Talvez possamos perguntar: ok, uma vez que a pessoa foi presa, o que acontece? Angela Davis [escritora e ativista feminista norte-americana] tem uma ideia de justiça restaurativa fora do sistema prisional. Há diferentes maneiras de lidar com essas situações que não necessariamente envolvam o encarceramento.”
Carolina de Assis
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