‘O Brasil deixou seu compromisso com os direitos das mulheres’, diz Françoise Girard

27 de outubro, 2014

(O Globo, 27/10/2014) Findou ontem no Brasil uma corrida eleitoral na qual disputaram três mulheres — uma delas presidente —, mas a posição do país na defesa pelos direitos femininos nas negociações globais vem dando passos para trás. O raciocínio é de Françoise Girard, que preside, desde 2012, a International Women’s Health Coalition (IWHC), aliança em defesa das mulheres que dá suporte a organizações de todo o mundo. Semana passada, ela esteve no Rio para se reunir com grupos de direitos humanos. Cientista política e especialista em saúde, direitos humanos e sexualidade, Françoise afirma: para que políticas públicas em favor das mulheres ganhem espaço, além de aumentar significativamente a proporção de autoridades do sexo feminino, é preciso cobrar delas o compromisso com a igualdade de gênero.

Direitos civis das pessoas LGBT e igualdade de gênero têm avançado em igual velocidade?

Vemos mais e mais a aceitação da noção de direitos sexuais. Há 50 anos, se você dissesse a alguém que hoje 30 estados americanos permitiriam o casamento entre pessoas do mesmo sexo, lhe diriam: “impossível”. Mas isso vem mudando muito rápido, e os jovens estão abertos à essa noção de que as pessoas devem poder expressar a sua sexualidade. Nas questões de direitos reprodutivos e direitos das mulheres, porém, há menos progresso. Nos anos 70 e 80, tivemos avanços em relação ao aborto em muitos lugares, por exemplo. Mas agora parece que emperramos e até voltamos atrás. Estamos nos perguntando o que está acontecendo.

E o que está acontecendo?

O direito ao aborto está relacionado à sexualidade da mulher. O debate real é sobre controlar essa sexualidade e ter certeza de que a mulher pagará por fazer sexo fora do casamento. É por isso que a Igreja Católica é contra a contracepção e o aborto. Para nós, então, isso tem a ver com a discriminação contra a mulher e com o sexismo. Casamento entre pessoas do mesmo sexo envolve homens, então os homens são privilegiados até nesse sentido.

Há mulheres que criticam o feminismo e rejeitam o rótulo de feminista. Por que?

Primeiro, não podemos subestimar o fato de que as mulheres abraçam a cultura majoritária em toda sociedade, e o patriarcalismo é parte dessa cultura. Então, algumas mulheres talvez pensem que podem se beneficiar do patriarcalismo e que não são feministas. Isso é verdade até que tenham dificuldade em obter a guarda dos filhos após um divórcio, que descubram que recebem o equivalente a 60% do salário de um homem que tem o mesmo trabalho que o seu ou que sejam estupradas e não possam dar queixa na polícia por medo. Você pode aceitar o patriarcalismo achando que ele não vai te machucar, até perceber que não é o caso. A outra questão é que realmente precisamos pensar a cara do movimento feminista. O feminismo que cresceu nos anos 60 e 70 não foi necessariamente acolhedor com as jovens e aberto a novas ideias. Há jovens que acreditam que podem ter solidariedade dos homens para lutar contra o sexismo, mas algumas mulheres da geração antiga discordam disso.

Esse assunto virou polêmica depois do discurso da atriz Emma Watson divulgando a campanha He For She, da ONU Mulheres. Qual a importância de engajar os homens no assunto?

Seria inapropriado que homens feministas tomassem lugar de mulheres feministas, mas há alianças possíveis. Muitas vezes homens só vão reagir de verdade a um discurso ouvindo argumentos de outros homens. E é muito importante que reflitam sobre seus privilégios e que se liberem da pressão que têm para ser másculos, dominantes e agressivos, porque esse também não é um lugar bom de se estar. É uma jornada dolorosa, mas sei que muitos homens querem se engajar nela. Há jovens pensando nessas questões e eles são bem-vindos.

Recentemente, no Rio, duas mulheres morreram depois de fazer abortos. Em grande parte, o debate sobre o assunto ocorre por uma perspectiva do crime, que trata da punição dos envolvidos. O que acha disso?

O problema é o fato de o aborto ser um crime. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, no mundo, 45 milhões de aborto ocorrem todos os anos. Como um procedimento médico tão comum está em tribunais penais? Isso tem de acabar. O que é proibido acaba parando na clandestinidade, não é regulado. As clínicas não são inspecionadas, as enfermeiras e outros profissionais não têm o treinamento correto, e as vidas das mulheres são colocadas em um roleta russa. Em todos os lugares onde o aborto é criminalizado, as taxas de mortalidade materna são altas e não há redução no número de procedimento. A África do Sul legalizou o aborto na década de 90 e imediatamente viu o número de mortes maternas cair vertiginosamente. Esse problema que está sendo visto no Brasil pode ser consertado, mas é preciso vontade política. Isso economizaria muito dinheiro do sistema de saúde, já que, depois dos abortos ilegais, as mulheres vão para as salas de emergência.

O assunto foi um tabu durante a campanha eleitoral, mesmo com três candidatos do sexo feminino, uma delas presidente. Há relação entre mulheres no poder e igualdade de gênero?

Não acho que a resposta seja apenas colocar uma mulher no poder. Sobretudo porque, muitas vezes, se tratam de mulheres que, para subir de posição, precisaram ser como homens. Até termos um número significativo de mulheres na política — não uma ou outra, mas um percentual expressivo —, não veremos a mudança que queremos. Além disso, as mulheres precisam pedir mais de suas candidatas mulheres, temos de demandar que se comprometam com os direitos das mulheres. Se estivermos satisfeitas apenas vendo uma mulher lá, então o erro é nosso.

Como o Brasil vem enfrentando a desigualdade de gênero?

O fato de o Brasil hoje desempenhar um papel diferente no cenário global, com uma posição mais importante, tem feito com que o seu comprometimento com a saúde sexual e reprodutiva e o direitos das mulheres não seja forte como era antes, porque o Brasil está jogando outros jogos políticos, que envolver o grupo de países árabes e o das nações africanas, por exemplo. O país deixou seu compromisso histórico com os direitos das mulheres.

Como isso é percebido?

Nas negociações globais. O documento final da Rio+20 tinha um parágrafo sobre saúde reprodutiva e sexual, e o Brasil, que estava relatando, suprimiu isso do texto, contrariando posições anteriores do país na ONU. Em reunião em Montevidéu ano passado, na qual só havia países da América Latina, sem grupos árabes, africanos ou o Vaticano, o Brasil propôs um parágrafo sobre soberania em um documento muito progressista sobre não discriminação com base na orientação sexual e de identidade gênero. Ou seja, propôs que países implementem o documento de acordo com o seu direito de fazer o que quiserem, o que é uma cláusula frequentemente proposta por países mais conservadores.

Você já visitou muitos países falando sobre igualdade de gênero. Qual experiência mais te marcou?

Há um grupo na Nigéria chamado Girls’ Power Iniciative. O trabalho foi iniciado por mulheres que viam meninas engravidando na adolescência, deixando a escola, sem ambição ou planos de vida. No início, há cerca de 15 anos, se reuniam em uma sala pequena aos domingos, e o projeto era voltado para meninas a partir de 14 anos. Mas, então, as irmãs mais novas das garotas começaram a acompanhar os encontros pela janela. As mulheres entenderam que, naquela sociedade, crianças de 8 anos entendiam o que é sexismo porque viviam isso. O programa então incluiu meninas mais jovens e hoje alcança 20 mil por ano. Isso é incrível porque a Nigéria não é um lugar onde imaginamos que coisas desse tipo estão acontecendo. Mas há organizações trabalhando para criar uma vida melhor para meninas no Paquistão, na Índia, na África do Sul, no Quênia.

Em 2015, a ONU Mulheres celebra 20 anos da histórica conferência de Pequim. O que mudou de lá para cá?

Vimos mulheres passando a integrar a força de trabalho em um grande número. Nem sempre elas estão em boas condições ou são bem pagas, mas o fato é que estão mais independentes economicamente. Também vimos a violência contra a mulher virar uma questão global. A esfera privada da vida foi aberta ao escrutínio. Antes, se algo acontecia dentro da família, não era falado, e ninguém intervinha. E estamos vendo mais participação política das mulheres. Há países que adotaram cotas nos assentos do Parlamento.

E qual a nova agenda feminista?

Estamos trabalhando com mulheres de todas as partes do mundo uma agenda completa de desenvolvimento sustentável por uma perspectiva feminista. Não estamos interessadas apenas em saúde sexual e reprodutiva ou assuntos tipicamente considerados questões feministas, mas também em mudanças climáticas, padrões de consumo, lutar contra a pobreza, respeito aos direitos humanos… A nova agenda feminista tem de ser uma agenda completa pela justiça.

Dandara Tinoco

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