(Folha de S.Paulo) O direito à moradia adequada é essencial para a efetivação de todos os outros direitos destinados às mulheres. Para aquelas que moram na periferia, a distância faz o transporte virar um sufoco. Andar pela rua sem iluminação transforma o caminho em medo. Não ter a casa no próprio nome é sinônimo de redenção ao marido agressor ou, então, aos altos preços do aluguel.
A mulher pobre, que ganha comprovadamente menos do que o homem pobre, tem destino certo, a periferia. Para ela, o recorte de gênero vem acompanhado do recorte de classe, e o que sobra é a moradia mais afastada.
Muitas são chefes do lar: 20% das famílias brasileiras são sustentadas pelo sexo feminino. Ainda assim, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em média, as mulheres ganham 28% a menos do que os homens.
Resta-nos, então, a casa perto do córrego que transborda ou nas encostas dos morros que desmoronam com a chuva. O lar vira sinônimo de algo sempre em construção, o sonho de o barraco ser de tijolo e do bloco ganhar reboco.
Moramos na casa da sogra e limpamos a da patroa esperando, um dia, cuidar da nossa.
Vivemos do trabalho como diaristas, costureiras ou operadoras de telemarketing. Dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) de 2011 mostram que 92,6% dos 6,6 milhões de trabalhadores nos serviços domésticos eram mulheres.
A pouca remuneração não nos permite conseguir um financiamento. Sem opção, esperamos por cada chamada do CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano). Perdemos a esperança quando não entoam o nosso nome durante os sorteios.
O aluguel remedia a falta do teto. Temos, porém, prioridade nos programas de habitação popular. Cerca de 47% dos contratos da primeira etapa do Minha Casa, Minha Vida foram assinados por mulheres. A facilitação do crédito, no entanto, veio com a especulação imobiliária, que aumenta os preços e nos empurra para ainda mais longe.
A periferia agora recebe megaeventos. Na zona leste, a valorização dos imóveis subiu mais de 40% desde o anúncio da abertura da Copa do Mundo no Itaquerão. Moradores da Favela da Paz, próxima ao estádio, terão que deixar o local onde moram há mais de 20 anos.
Quando finalmente alcançamos casa própria, é no improviso. Vamos administrando a goteira com o balde, o mofo com a pintura a cal, a enchente com o içar dos móveis.
Esgoto a céu aberto e rua sem asfalto também esbarram no direito à moradia. Dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) apontam que quase 40% da população não tinha acesso a rede coletora de esgoto em 2012.
O direito à moradia inclui ainda outras vulnerabilidades, como a violência doméstica. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre 2009 e 2011, mostra que o Brasil registrou 16,9 mil mortes de mulheres por conflito de gênero.
Todas essas dificuldades não tiram nossa garra. É nos movimentos de moradia que botamos as mãos na massa –para garantir, assim, a efetivação de outros direitos das
mulheres. Se o Estado não oferece, é na mobilização que fazemos valer o nosso direito. E apesar de tudo o que é negado a nós, mulheres da periferia, não desistimos da batalha para termos um lar e fazemos da labuta diária a nossa morada.
ALINE KÁTIA MELO, 30, e BIANCA PEDRINA, 29, são jornalistas
* Também subscrevem este artigo:
CÍNTIA GOMES, 30, JÉSSICA MOREIRA, 22, LÍVIA LIMA, 27, MAYARA PENINA, 23,
PRISCILA GOMES, 30, e SEMAYAT OLIVEIRA, 24, são jornalistas
Acesse em pdf: Nós, moradoras da periferia (Folha de S.Paulo – 08/03/2014)