A sociedade é sexista e é preciso educar para erradicar essa tendência
Estes livros, séries, músicas e filmes podem ajudar
(El País, 07/09/2016 – acesse no site de origem)
“Doutrina que preconiza o aprimoramento e a ampliação do papel e dos direitos das mulheres na sociedade.” Esta é a definição do dicionário Houaiss para a palavra feminismo. Mas, se fizéssemos uma pesquisa rápida ao nosso redor, certamente nos surpreenderíamos com a quantidade de pessoas que explicariam esse conceito de uma maneira muito diferente e, provavelmente, errada. Infelizmente, a definição de feminismo é como a de corrupção: cada um a interpreta à sua maneira, e praticamente todos querem puxar a brasa para a sua sardinha, construindo uma rede de nuances muitas vezes desnecessária, e outras que servem apenas como cúmplices ou disfarce. Se para muitos adultos já é difícil explicar o que é feminismo, o que então devemos responder ao nosso filho (ou filha, sejamos inclusivos) se ele quiser saber o que é isso em mais de 17 palavras, e se aprofundar?
Para isso, reunimos vários especialistas em música, cinema, televisão e livros e pedimos que escolhessem, cada um dentro do seu terreno, cinco produtos culturais perfeitos que ajudariam um adolescente a compreender esta ideologia. Trata-se de Carlos Bouzá, sociólogo e jornalista especializado em cinema e música da revista feminista basca Pikara Magazine; Leyre Khyal, antropóloga e sexóloga; Salvador Catalán, gestor cultural e crítico musical; Carlos Marañón, diretor da revista Cinemanía; Natalia Marcos, jornalista da seção de Televisão do EL PAÍS; Mariló García, jornalista e responsável pelo blog de séries Yo No Me Aburro, e Josune Muñoz, crítica literária e diretora do centro cultural Skolastika, de Bilbao (Espanha), especializado na cultura produzida por mulheres.
Quem sabe, depois deste banho de cultura, conseguimos acabar de vez com aquela história de “não sou feminista, acredito na igualdade”.
Cinco livros (mais um megaclássico)
– King Kong Théorie, de Virginie Despentes. Esta obra (inédita no Brasil) sacode – e nocauteia – até mesmo quem já conhece bem o feminismo. É crua, ataca o âmago do mito da mulher perfeita que a sociedade tenta impor, e faz isso sem um mínimo de correção política. “Prepare-se para conhecer as consequências da liberdade, é honesto e fortalece”, diz a antropóloga e sexóloga Leyre Khyal. A autora francesa Virginie Despentes é considerada uma das mais relevantes pensadoras da nova corrente feminista. O curioso é que, a partir de uma perspectiva autobiográfica e marcada por uma história concreta, King Kong Théorie consegue que todos tenhamos a sensação de que também estivemos lá.
– Margarita, de María Colino. “Para se aproximar do feminismo de uma maneira rápida e cheia de humor ácido, e de passagem se familiarizar com o humor feminista”, recomenda a crítica literária Josume Muñoz. María Colino é uma antropóloga (agora mais voltada para o estudo de tribos amazônicas) que se tornou referência espanhola em HQ feminista. Nesta graphic novel de 60 páginas (também inédita no Brasil) ela se volta para Margarita, uma adolescente reivindicativa que se pergunta o que será quando crescer e questiona sem pudor os papéis de gênero estabelecidos.
– Feminismo Para Principiantes, da Nuria Varela. Como seu título indica, esta obra (inédita no Brasil) narra de maneira amena, porém rigorosa, a história do feminismo até a atualidade. “Uma leitura imprescindível, que estimula o desejo de se aprofundar nas teorias feministas”, diz Muñoz. Além disso, o livro conta com um anexo com textos fundamentais do feminismo, como a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadania, de Olympe de Gouges, e não despreza praticamente nenhum tema. Leve em conta que, depois de lê-lo, é muito provável que seu filho possa lhe dar lições sobre o feminismo.
– Pillada por Ti, de Cristina Durán e Miguel A. Giner. Segundo dados de 2015 do Ministério da Saúde, Serviços Sociais e Igualdade da Espanha, 25% das mulheres entre 16 e 19 anos no país sofreram violência de controle por parte de seu namorado, cônjuge ou ex-cônjuge nos 12 meses anteriores, um percentual maior do que em outras faixas etárias. Pillada por Ti (apanhada por você) busca sensibilizar contra a violência de gênero, especialmente entre adolescentes. Trata-se de uma obra em quadrinhos que pode ser inclusive baixada no celular.
– O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. É provavelmente uma das obras mais relevantes da literatura feminista e, surpreendentemente, as vendas acompanharam a sua relevância. E tudo isso apesar de ter saído em 1949, uma época em que não parecia ser muito popular a ideia de conclamar cada mulher a construir sua própria identidade, já que a ideia aceita sobre ser mulher era simplesmente um produto social. Uma obra capital, “que materializa o feminismo ocidental na esfera intelectual”, diz Khyal.
– Um Teto Todo Seu, de Virginia Woolf. “Uma mulher precisa ter dinheiro e um quarto próprio se quiser escrever ficção”, sentenciava a autora britânica neste ensaio sobre a literatura e as mulheres, que acabou extrapolando para a necessidade da mulher de ter uma independência econômica e também pessoal – “um teto todo seu” – para se realizar. “Um clássico imprescindível”, diz Muñoz. E que ainda contém uma preocupante atualidade.
Cinco filmes
– Amigas de Colégio (Lukas Moodyson, 1998). “Nunca o livre desenvolvimento das opções sexuais na adolescência foi narrado com tanto sentido, com tanto carinho”, sentencia o diretor da Cinemanía. É um filme protagonizado por adolescentes, mas não de adolescentes. Elas, Alexandra Dahlström (como Elin) e Rebecca Liljeberg (como Agnes), são a garota popular e a garota retraída e quase sem amigos de um pequeno povoado sueco. Exceto pela localização, com este começo poderia ser qualquer filme de Hollywood transbordando lições de moral antibullying. Mas não se deixe enganar; há muito, muitíssimo mais. “Aborda a tensão entre o desejo de iniciar-se com liberdade na vida afetiva e a ameaça do ambiente, quando esse desejo envolve adolescentes do mesmo sexo”, diz o sociólogo Carlos Bouzá.
– A Costela do Adão (George Cukor, 1949). “Um título perfeito da Hollywood clássica para ilustrar a pré-história da luta de gêneros”, analisa Carlos Marañón, diretor da Cinemanía. Katharine Hepburn borda o papel da feminista avant la lettre, e o faz porque a mítica atriz acreditava firmemente na causa. Interpreta uma advogada que aceita um caso no qual uma mulher atirou no marido e na amante dele. A motivação da personagem de Hepburn se eleva ainda mais ao ficar sabendo que o seu próprio marido (Spencer Tracy) será o advogado da acusação. O curioso é que a realidade contagiava de certa forma a ficção, já que a atriz tinha uma relação com Tracy na vida real. O filme mostra sem disfarces a moral ambígua da época, na qual podia haver empatia com um marido que agredia a sua mulher ao ser infiel, mas não o contrário.
– 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (Cristian Mungiu, 2007). Pode parecer um filme sobre o direito ao aborto, mas é muito mais do que isso. Tendo como pano de fundo a ditadura romena de Ceaucescu – que curiosamente nem é mencionada –, o diretor expõe um retrato de opressão e medo. Para Marañón, trata-se “quase de uma história de terror realista, onde a igualdade prometida pela ditadura do socialismo de Estado encobre um mercado negro de tragédias humanas e impotência”. O brilhantismo das suas jovens atrizes e o jogo de câmera nos inclui desde o primeiro momento numa história perturbadora. Impossível ficar indiferente.
– Mad Max: Estrada da Fúria (George Miller, 2015). Não é comum ver uma heroína em Hollywood, ainda mais sem capa, muito couro em minúsculos uniformizes e melenas ao vento. Furiosa, interpretada por uma Charlize Theron de cabelo rapado, essa heroína rouba todo o protagonismo de Max (Tom Hardy). “Há uma ideia de grande potência no coração deste filme, que consiste em familiarizar uma nova geração de consumidores de cinema de ação com um modelo inédito de heroína: forte, independente e com poder real de transformação sobre o mundo”, ressalta Bouzá.
– Thelma e Louise (Ridley Scott, 1991). Há muito de clichê neste filme, e ainda assim ele causou alvoroço numa indústria cinematográfica que não estava – e talvez ainda não esteja – acostumada a ver mulheres em papéis fortes. E aqui havia duas, interpretadas, além do mais, por duas atrizes declaradamente feministas: Susan Sarandon e Geena Davis – que fundou um instituto voltado ao estudo do papel das mulheres em Hollywood. “Duas ou três de suas sequências tiveram mais efeito sobre o subconsciente coletivo do que todas as campanhas institucionais sobre a igualdade de gênero que possamos imaginar”, diz Marañón.
Cinco séries
– Transparent. “Aborda a identidade sexual a partir de uma perspectiva cheia de sensibilidade e de reflexões sobre o que significa ser homem, ser mulher e ser uma pessoa; o papel de gênero, a identidade individual e o papel da família”, diz Natalia Marcos, especialista em séries do EL PAÍS. Conta a história de uma família depois da descoberta de que o pai é uma mulher transexual. A criadora da série, Jill Soloway, que se inspirou no próprio pai, lançou, em parceria com Rebeca Odas, o wifey.tv, um site destinado a peneirar o conteúdo on-line para recuperar o que é interessante para as mulheres.
– Younger. O teórico grande desejo de todas as mulheres — aparentar ser mais jovem — serve como um fio condutor para esta “radiografia geracional cheia de humor, na qual se confirma que, com o mesmo espírito, a idade não importa”, afirma a especialista Mariló García. A protagonista é Liza, interpretada por Sutton Foster, uma mulher de 40 anos que tem uma filha adolescente e que foi deixada pelo marido — claro, por outra mais jovem — e que, para voltar ao trabalho, se faz passar por uma garota de 20 e poucos anos.
– El Ministerio del Tiempo. Na série do canal espanhol TVE, vários protagonistas são homens, mas “as personagens femininas têm a mesma força e o mesmo poder (ou mais) que os do sexo masculino”, argumenta Marcos. A chefe da patrulha que viaja no tempo para colocar ordem nas confusões é Amelia Folch — Aura Garrido na vida real —, uma feminista e à frente de seu tempo que, segundo a série, é uma das primeiras universitárias espanholas. Não é demais mencionar Irene Larra, interpretada por Cayetana Guillén Cuervo, ou Lola Mendieta, a vilã interpretada por Natalia Millan.
– Gilmore Girls. “O feminismo se mostra não apenas em algumas protagonistas que são interessantes independentemente de suas relações com os homens (ainda que o lado romântico sempre esteja presente), e que passariam fácil pelo teste de Bechdel”, afirma Marcos. Esse teste procura avaliar a diferença de gênero em filmes, séries, obras de teatro, entre outros, por meio de três requisitos: há pelo menos duas personagens femininas que conversam entre si e cuja conversa vai além de falar de um homem. E, acreditem, não há muitas séries que passam no teste. No entanto, a ficção de Amy Sherman-Palladino, que voltará ao Netflix antes do final do ano com quatro novos capítulos, está repleta de personagens femininas “muito melhor elaboradas do que os do sexo masculino”. Além disso, as referências a mulheres influentes, como Jane Austen, Emily Dickinson e Sylvia Plath, são constantes nos rápidos diálogos da série.
– Crazy Ex-Girlfriend. Rachel Bloom é Rebeca, uma mulher decidida a mudar de vida para conquistar um homem. Dito assim não parece muito feminista, mas “esconde uma dupla leitura que evidencia na encenação uma autocrítica selvagem”. Esta sátira do amor idealizado, tão valorizado em Hollywood, também tem dois pontos fortes, segundo Mariló García: “Os números musicais e personagens secundários masculinos que não perpetuam o sistema patriarcal, o que, muitas vezes, é esquecido quando falamos de feminismo na televisão”.
Cinco canções
– Gloria, de Patti Smith. “É o hino feminista mais famoso da história do rock”, avalia Carlos Bouza, sociólogo e crítico de música. O álbum de estreia de Patti Smith, Horses (1975), continha a versão dessa canção de Van Morrison, Gloria, que diz: “Jesus died for somebody’s sins but not mine” (Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não os meus). “Uma canção composta em defesa do lesbianismo e do prazer, e repleta de rebeldia e independência”, diz o crítico musical Salvador Catalán. A capa do álbum se distanciava completamente dos cânones femininos da época e acabou se tornando um ícone.
– Alien She, de Bikini Kill. Trata-se de uma das bandas clássicas do chamado movimento riot grrrl, onde a temática feminista está muito presente. O grupo de punk norte-americano Bikini Kill, formado por três mulheres e um homem, fez deAlien She a chave da luta feminista. “Descreve, em primeira pessoa, o despertar da consciência feminista na adolescência, quando surge a tensão entre acatar os mandatos de gênero ou optar por combatê-los”, explica Bouza. Catalán também cita Typical Girl, da The Slits, considerando a banda britânica o “modelo do movimento riot grrrl”.
– Get ur freak on, de Missy Elliott. E, do punk, vamos ao rap, porque, embora pareça impossível, o rap feminista existe e Missy Elliott é uma das pioneiras. Com cinco Grammys, “luta contra o alarde hipermasculino do hip hop com todas as armas ao seu alcance: imagem da mulher sexualmente empoderada, controle absoluto de sua carreira e uma inventividade extraordinária como compositora e produtora”, diz Bouza.
– Respect, de Aretha Franklin. “Tudo o que quero é um pouco de respeito”, diz esta canção, gravada um pouco antes por Otis Redding, mas que, na profunda voz de Aretha, se tornou um “uma crua petição de respeito conjugal. Um cenário íntimo e opaco, onde a mulher sempre jogava com cartas marcadas”, afirma Catalán. Era o ano de 1967, e a grande Aretha tornou-se pioneira, não apenas como feminista, mas também na luta contra o racismo.
– Suggestion, de Fugazi. Porque esta lista não seria composta apenas de mulheres. “Em sua canção Suggestion, aborda o assédio sexual diário e socialmente aceitável: “Por que não posso andar na rua / sem ter de suportar todas essas insinuações?”. Este grupo masculino norte-americano é conhecido por atuar às margens da indústria musical; não promove suas músicas por meio de vídeos e cobra valores quase fixos e reduzidos para todos os concertos e álbuns. Atualmente, os vídeos de seus shows podem ser baixados no site do grupo por cinco dólares (cerca de 16 reais). Além de feministas, são generosos.
Elena Horrillo