(Folha de S. Paulo, 15/03/2016) Há situações em que os esforços para invisibilizar ou deturpar um assunto acabam por afirmá-lo e ampliar sua circulação. É como diz a letra da canção: “Peço tanto a Deus/ Para lhe esquecer/ Mas só de pedir me lembro”. Gênero, equidade de gênero e identidade de gênero estão nessa categoria.
O processo da transexualização público de Thammy Miranda, a história do escritor João Nery e a recente decisão de um juiz de permitir a alteração de registro de uma menina transgênero no Brasil são exemplos recentes de luzes atravessando a barreira que as forças políticas lhes impõem.
“Ideologia de gênero” é a expressão cunhada por fundamentalistas religiosos para deturpar o debate acerca de equidade e identidade de gênero -como se essa agenda representasse a abolição da diferença biológica entre os sexos- e, assim, enfraquecer a luta por direitos das pessoas transexuais e das mulheres em geral.
Apesar dos esforços para banir essas questões da agenda republicana, o tema está emergindo com força até mesmo em Hollywood. O filme “A Garota Dinamarquesa”, vencedor do Oscar de melhor atriz coadjuvante (Alicia Vikander), ainda em cartaz no Brasil, narra ao grande público as desventuras da pintora transexual Lili Elbe, uma das primeiras pessoas a se submeter a uma incipiente técnica cirúrgica de redesignação sexual.
A história de Lili Elbe evoca as de um número crescente de pessoas que lutam por visibilidade e respeito. São aqueles e aquelas que correspondem ao T da sigla LGBT: travestis e transexuais (ou transgêneros). Assim como Lili Elbe, são pessoas equivocadamente classificadas como portadoras de “disforia de gênero” ou de outros transtornos psíquicos, numa patologização que acarreta violências simbólicas e físicas.
Uma confusão cada vez mais estimulada por esses setores é a que se faz entre orientação sexual (De quem eu gosto? Quem eu desejo?) e identidade de gênero (Quem eu sou para mim mesmo? Como me vejo ou me percebo no mundo do qual faço parte?).
Recentemente o público do “Jornal Nacional” conheceu a história de um menino de nove anos que conseguiu, por meio da Justiça e com o consentimento e a compreensão dos pais, retificar seu registro civil para que fosse reconhecido, legalmente, como menina, pois desde os primeiros anos de vida identificava-se com o gênero feminino.
Apesar de respeitosa, a reportagem não fez qualquer ligação com o recente debate que varreu o país em torno da referência à identidade de gênero nos planos nacional e municipais de educação.
Também não citou o projeto de lei João Nery, de minha autoria, atualmente em debate na Câmara, alvo de deturpação por fundamentalistas religiosos que me acusam de querer “obrigar criança a mudar de sexo” ou “a virar gay”.
O foco principal do projeto, cujo nome homenageia o escritor nascido mulher que passou por operação de mudança de sexo em 1977, é reconhecer a identidade de gênero como um direito.
O projeto prevê que o (a) jovem trans -e não “qualquer criança”- deverá ter acesso à Justiça quando um de seus responsáveis se opuser ao seu desejo expresso de iniciar o processo de transexualização, que inclui procedimentos como o uso de bloqueadores de hormônios, terapia hormonal, cirurgias plásticas, implante de seios, mamoplastia, depilação a laser, entre outros.
Alguém pode imaginar o sofrimento de uma pessoa que começa a sentir os sinais da puberdade, a barba ou os seios crescendo, quando isso parece estar em completo desacordo com quem ele ou ela acha que é?
A cirurgia de redesignação sexual nem sempre é um anseio da pessoa transgênero. Ela deseja, antes de tudo, ser tratada pelo nome com o qual se identifica, ter a documentação condizente com sua identidade social e ser respeitada.
Tentar varrer da agenda pública as questões de gênero põe em dúvida se de fato estamos sob um Estado democrático e laico, do qual todos dependemos para exercer nossas liberdades e nossos direitos.
Jean Wyllys é deputado federal pelo PSOL-RJ
Acesse o PDF: A farsa da “ideologia de gênero”, por Jean Wyllys (Folha de S. Paulo, 15/03/2016)