(Carta Capital, 11/12/2015) Não importa a atividade que exerça, o corpo da mulher não lhe pertence socialmente, ele é “público”
Namoradeira, casada, solteira, poliamorista. Por que a vida sexual de uma mulher na política institucional – no caso, a ministra Kátia Abreu (PMDB) – é motivo de interesse e, pior ainda, de comentário pejorativo por parte de um dos mais conhecidos senadores da República, José Serra (PSDB)?
Simples: porque, não importa a atividade que exerça, o corpo da mulher não lhe pertence socialmente, ele é “público”. Logo, é passível de assunto em rodas de conversa, de cantadas na rua e também de estupro. Sim, a lógica é a mesma, a da apropriação.
Enquanto os homens são vistos como tendo um sexo, as mulheres são vistas como sendo o sexo inteiro, já dizia a socióloga francesa Colette Guillaumin. Segundo ela, ser mulher é nossa definição na sociedade:
Diante de um patrão, há sempre uma ‘mulher’, diante de um ‘politécnico’, há uma ‘mulher’, diante de um operário há uma ‘mulher’. Mulheres nós somos, não é um qualificativo entre outros, é nossa definição social. Tolas as que acreditam que é apenas um traço físico, uma ‘diferença’ – e que a partir desse ‘dado’ múltiplas possibilidades nos seriam abertas. (…) Não é o começo de um processo (uma ‘partida’, como acreditamos), é o fim, é o fechamento.
Guillaumin cita alguns exemplos de frases retiradas de jornais para marcar a diferença: “um estudante foi punido com um mês de confinamento e uma jovem mulher foi repreendida” (informações sobre sanções na Escola Politécnica de Paris); “eles assassinaram dezenas de milhares de trabalhadores, de estudantes e mulheres” (Fidel Castro sobre o regime ditatorial de Fulgêncio Batista em Cuba nos anos 1950).
Em um espaço como a política institucional, em que elas representam menos de 15%, as que atuam como deputadas, ministras, senadoras, presidentas são, antes de tudo, mulheres. E comentários como o feito pelo senador José Serra contribuem não apenas para lembrá-las dessa condição hierarquicamente inferior em relação aos homens, como também para mantê-las nessa posição.
Comentário esse, aliás, que provavelmente só se tornou notícia nacional porque a dita cuja citada reagiu às insinuações e tacou-lhe um copo de vinho na cara. Senão, seria motivo de risadinhas e acabaria em silêncio, perpetuando as pequenas violências cotidianas, entre as quais a argumentação de que um casamento recente seria comprovação de algum tipo de dignidade. Como se as mulheres solteiras, divorciadas, enroladas etc. não fossem dignas de respeito.
Não interessa o que Kátia Abreu faz com o corpo dela. O que interessa a respeito de Kátia Abreu é sua atuação política. É termos, por exemplo, uma das maiores representantes do latifúndio brasileiro no comando do Ministério da Agricultura em um governo que deveria ser de centro-esquerda e depois de 13 anos no poder – que cabalístico esse número! – não realizou a reforma agrária.
E que agora, em vez de ter como base social para sua sustentação movimentos que historicamente participaram da construção do PT, como o MST, enfraquecidos após tanto tempo de cooptação e/ou inação, tem nesse mesmo PMDB o (in)fiel da balança de sua permanência no poder.
Acesse no site de origem: A vida sexual de Kátia Abreu não interessa a ninguém, Maíra Kubík Mano (Carta Capital, 11/12/2015)